A Constituição, em seu artigo 79, estabelece que o vice-presidente da República tem apenas uma função relevante: substituir temporariamente o presidente, se este se encontrar doente ou em viagem, ou suceder-lhe, se o cargo ficar vago. No caso de doença, por exemplo, a função presidencial obviamente deve ser exercida pelo vice enquanto o presidente não estiver restabelecido a ponto de conseguir retornar ao trabalho. Há uma razão comezinha para ser dessa forma: a administração do País e a tomada de decisões do governo não podem depender da plena recuperação da saúde do presidente, que pode demorar dias ou até meses.
É preciso que haja alguém com autoridade constitucionalmente reconhecida no exercício do cargo para deliberar sobre os assuntos do governo e orientar os ministros. Do contrário, haverá indesejável paralisia administrativa - como a que o País assiste agora em razão da prolongada internação do presidente Jair Bolsonaro.
Inexplicavelmente, Bolsonaro reassumiu seu cargo apenas 48 horas depois de uma cirurgia de sete horas de duração, realizada no dia 28 de janeiro, para a reconstituição do intestino, atingido no atentado à faca que sofreu ainda na campanha eleitoral, em setembro do ano passado. Conforme os boletins médicos, a operação foi bem-sucedida, e a equipe que o atendeu estabeleceu inicialmente um prazo de dez dias para a recuperação do presidente, mas mesmo esse prazo se mostrou otimista demais. Jair Bolsonaro continuava internado duas semanas depois da cirurgia, período em que o presidente apresentou quadro de pneumonia e febre.
Nesse meio tempo, em vez de delegar suas funções para o vice-presidente Hamilton Mourão, conforme estabelece a Constituição e manda o bom senso, Bolsonaro julgou que poderia logo retomar a dura rotina presidencial - até mesmo uma espécie de gabinete foi montado no quarto do hospital para que ele pudesse despachar. No dia 31 de janeiro, Bolsonaro chegou a fazer uma videoconferência com um ministro e a telefonar para outros, mas logo teve de interromper esse trabalho por ordens médicas - o presidente não poderia nem sequer falar, que dirá encontrar-se com ministros e tomar decisões de Estado. O repouso deveria ser absoluto.
Está claro que, nessas circunstâncias, o vice Hamilton Mourão deveria ter assumido o cargo, pois há diversas decisões à espera do aval do presidente, como a formatação da reforma da Previdência, para ficar só na mais importante. No entanto, Bolsonaro optou por manter-se no cargo mesmo sem ter condições para isso.
Não se conhecem as razões de tal decisão, mas consta que os filhos de Bolsonaro, cuja opinião é determinante para o presidente, não se dão bem com o vice-presidente. O ruído entre eles ficou ainda mais acentuado quando Hamilton Mourão resolveu dar opiniões sobre temas caros aos Bolsonaros - disse, por exemplo, que era contra a mudança da Embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, uma promessa de campanha. Além disso, Mourão está tentando construir uma boa relação com a imprensa, contra a qual os filhos de Bolsonaro dedicam grande virulência. Em resumo, a relação do entorno do presidente com Mourão é de desconfiança. Num país em que tantos vices assumiram o cargo de presidente por vacância, isso tende a alimentar todo tipo de especulação.
Assim, o governo hoje é exercido por alguém sem condições de saúde para tal, sofrendo influência direta e ampla dos filhos - que não receberam um único voto para presidente nem ocupam cargos de ministros. O exercício da Presidência pelo vice-presidente deve respeitar o que diz a Constituição, e não o que ditam os filhos do presidente. Não se trata de uma questão familiar, mas institucional.
Bolsonaro precisa o quanto antes se dar conta de que não está mais em campanha, quando todos os problemas do País podiam ser “resolvidos” por meio de slogans digitados em redes sociais, sob orientação dos filhos. Governar é muito diferente de tuitar: demanda presença, articulação, lucidez - isto é, tudo o que Bolsonaro, convalescente e a reboque dos filhos e dos aliados mais radicais, ainda não conseguiu oferecer ao País.