terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Um país entregue aos ratos, por José Nêumanne

Caixão de Samuel Rosa, um dos garotos carbonizados no CT do Flamengo, envolto na bandeira rubro-negra, é levado à última morada. Foto: Antonio Lacerda/EFE
“Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”, cantava Jorge Benjor, o genial sambista carioca, que adaptou a seu estilo descolado o ufanismo, expressão que passou a ser usada em linguagem corriqueira para definir orgulho pela pátria, desde que foi editado, em 1900, o livro Porque me ufano de meu país, de autoria do conde Affonso Celso. Adotada como leitura obrigatória nos cursos de educação moral e cívica, que agora o ministro colombiano Ricardo Vélez Rodríguez anuncia que ressuscitará em nossas escolas, a obra pode ou não ter inspirado a lenda urbana segundo a qual Deus seria brasileiro.
Se a disciplina a ser implantada por Sua Excelência for levada a sério talvez fosse o caso de adotar o antônimo empregado pelo nobre entusiasta, pois, de fato, se têm acumulado exemplos de vergonha no noticiário que inspirariam um poema caudaloso como o épico Uraguai, de Basílio da Gama, de 1756, narrando a luta entre bandeirantes e jesuítas espanhóis pela região dos Sete Povos das Missões, no Rio Grande do Sul. Quanto à questão do berço do Criador, implausível, de vez que a eternidade é infinita, portanto não tem fim e também não tem começo, seria o caso de dizer que Ele adotou a condição mais justa de apátrida após o que tem tido a justificar a anjos e arcanjos nesta destruição indiscriminada de belezas naturais espalhadas por este subcontinente. E, sobretudo, o massacre de vidas animais, inclusive humanas, vitimadas por negligência, imprudência, indiferença, incúria e impunidade de cidadãos e autoridades.
O jornal O Globo listou 10 grandes tragédias brasileiras em sua edição de segunda-feira 11 de fevereiro de 2019. Em 2007, ninguém ligou para denúncias da falta de segurança do aeroporto de Congonhas em São Paulo e um jato da TAM caiu no pouso. Morreram 119 pessoas. Márcio Castro, então diretor da TAM, e Denise Abreu, da Agência Nacional de Aviação Civil, foram processados e inocentados. Em 2008, as enchentes de Itajaí (SC) fizeram 135 mortos. O prefeito de Barra Velha, Samir Mattar (PMDB), foi afastado por suspeita de desvio de verbas para obras para enchentes e voltou ao cargo um ano depois. Em 2010, 214 morreram no deslizamento do morro do Bumba, em Niterói, e os acusados de furto de recursos federais respondem a processos quase nove anos depois. Prefeitos de Teresópolis e Nova Friburgo tiveram destino similar ao do catarinense em 2011, depois que as enchentes na Região Serrana do Rio fizeram 918 mortos. Por causa da explosão do restaurante Filé Carioca, no centro do Rio, no mesmo ano, com quatro mortes, foram denunciados criminalmente o dono e o gerente. A ação contra fiscais municipais continua em aberto.
Em 2012, 17 moradores morreram no desabamento do Edifício Liberdade, também no Rio, e os acusados de negligência foram absolvidos com a desculpa de que obras do Metrô nos anos 1970 contribuíram para a catástrofe. Em 2014, morreram 242 em incêndio na Boate Kiss em Santa Maria (RS). O caso nunca foi julgado após uma série de recursos e espera decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O rompimento da barragem de Fundão em Mariana (MG) provocou 19 mortes. Até hoje ninguém foi punido. A ação penal não foi julgada e as empresas Samarco e Vale, responsáveis pelo desastre, não pagaram multas ambientais de R$ 250 milhões. Em 2017, a lancha Cavalo Marinhonaufragou na Bahia de Todos os Santos, a Marinha identificou três responsáveis por negligência e imprudência e o processo não saiu da primeira instância. No ano passado, sete moradores morreram no desabamento da antiga sede da Polícia Federal perto do Largo do Paissandu, em São Paulo, e até hoje ninguém foi punido.
O ano de 2018 terminou com o incêndio do Museu Nacional na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro. Não houve vítimas fatais. O que foi incinerada na noite de 2 de novembro último foi a memória nacional, abandonada pelas autoridades, que deveriam zelar por ela, à gestão ruinosa, incompetente e amadorística da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), controlada por um partideco de extrema esquerda, o PSOL, sempre pronto a denunciar malfeitos de adversários, mas também incapaz de uma autocrítica, prática tão prezada pelos marxistas leninistas. O PSOL, que está reclamando do presidente Jair Bolsonaro por ele ter recordado de novo a verdade de que Adélio Bispo de Oliveira, que o esfaqueou em Juiz de Fora (MG), em 6 de setembro, foi militante do partido, omite ainda que o terrorista italiano Achile Lollo foi seu ideólogo até voltar à Itália após a prescrição de seu crime e não faz mea culpa pelo incêndio. Do patrimônio da Universidade de São Paulo (USP), o Museu da Independência do Ipiranga, com as paredes caindo aos pedaços, foi fechado à visitação pública há cinco anos. Só Deus sabe se, enfim, este ano, serão mesmo iniciadas as obras para sua restauração.
Este ano começou aziago com o arrombamento da represa com rejeitos minerais da Vale, uma das donas da barragem de Fundão, que matou o rio Doce há mais de três anos, centenas de funcionários da empresa, cujos escritórios e o restaurante foram construídos à jusante dela de forma imprudente, e transeuntes circunstanciais na rota da lama.
O presidente da mineradora, Fábio Schvartsman, produziu, desde 25 de janeiro, uma série de explicações absurdas, tal como a sirene de alerta não ter funcionado porque foi destruída pela lama seca que levou a barragem. No heroico trabalho de busca dos bombeiros mineiros, com salários atrasados desde a desastrosa administração petista do queridinho de Dilma Rousseff, Fernando Pimentel, foram encontradas duas sirenes intactas, despedaçando a desculpa amarela do atarantado executivo.
Ainda não se sabe o total dos mortos cimentados pela lama seca da barragem do Córrego do Feijão nem que ameaça representa a chegada desse material mortífero à represa de Três Marias, um dos símbolos do ufanismo dos “anos de ouro”. E daí ao São Francisco, o velho Chico, que, nos tempos em que se ministrava moral e cívica nas escolas públicas, era chamado de “o rio da unidade nacional”. Assolado por desastres naturais menores ao longo de seu curso, este inspira mais uma metáfora a causar vergonha – ufanismo ao contrário – deste país entregue a ratos e baratas.
O incêndio da madrugada de sexta-feira 8 de fevereiro de 2019. no CT de Vargem Grande no Rio assassinou os sonhos de promissores craques de um time de ponta no futebol brasileiro, que nunca justificou aulas de louvores à pátria nas escolas. Nos últimos tempos, com a descoberta dos larápios da Fifa, incentivados pelo negócio monumental que a paixão da massa patrocina no mundo inteiro, o velho esporte bretão de Garrincha e Pelé tornou-se no planeta mais uma modalidade criminosa. A prisão do ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) José Maria Marin, também ex-governador de São Paulo, expõe a necessidade da aplicação de raticidas na política e no esporte. A mortandade dos meninos do Flamengo introduz a cartolagem no universo ensanguentado dos assassinos seriais que não podem ser apenados como deveriam ser, porque seus advogados togados empurrarão suas penas para calendas gregas nos mais altos tribunais de uma república em que a justiça quer dizer exatamente o oposto da que define a palavra pomposa nos dicionários. O negócio sórdido do futebol profissional vende falsidades, tais como “isso não é um clube, é uma nação”, “o Flamengo não tem ídolo, tem entidade” ou a hipérbole falsa da transformação da camisa de um mero time num “manto sagrado”.
O delírio da maior torcida de clubes brasileiros é nutrido por mentiras que pertencem apenas à memória – do gênero “craque se faz em casa”. Fazia-se no tempo em que o rubro-negro da Gávea foi campeão mundial. Hoje é apenas uma imensa roleta viciada em que dois de seus vice-presidentes foram presos na Lava Jato e os atuais compram astros dos gramados por milhões de dólares em negociatas suspeitas. Mas reservam aos craques a fazer em casa a imolação do martírio, que faz de seu sonho pesadelo e devolve à sua família a miséria da rotina, em que o talento do filho carbonizado impede também a perspectiva de fama, glória, fortuna e idolatria da massa apaixonada e iludida pela cartolagem fria e desonesta.
No Brasil, onde prostituta tem orgasmo, cafetão se apaixona e traficante fica viciado, o cidadão não poupa e a autoridade vende sua vista grossa a gananciosos da privataria, todos cegos, surdos e impunes.
Jornalista, poeta e escritor

O Estado de São Paulo