O trem faz parte do cotidiano de várias cidades, como transporte urbano ou intermunicipal. Também é tema da música brasileira, tanto a popular quanto a erudita. Quem não se lembra do “Trem das Onze”, de Adoniran Barbosa, ou do “Trenzinho do caipira”, de Villa-Lobos? Lembrei-me das canções ao ler o edital de licitação da parte central da ferrovia Norte-Sul, de Estrela d’Oeste (SP) a Porto Nacional (TO), lançado no fim de 2018, cujo leilão está marcado para 28 de março.
Com este edital, poucas serão as empresas participantes do leilão. Esta ferrovia não tem acesso direto a nenhum porto. Para que os trens possam acessar o Porto de Itaqui, no Maranhão, eles terão de passar por um trecho já em operação administrado pela VLI (empresa da qual a Vale é sócia) e pela Estrada de Ferro Carajás, controlada pela própria Vale. Para acesso ao Porto de Santos, terão de percorrer trecho na Malha Paulista, controlada pela empresa Rumo, pertencente ao grupo Cosan.
Para que investidores ou operadores ferroviários, não ligados à Vale ou à Rumo, tenham interesse em participar do leilão, seria necessário oferecer garantias de que os trens da Norte-Sul poderiam trafegar por essas ferrovias. Ninguém em sã consciência irá gastar quase R$ 3 bilhões em locomotivas e vagões e mais de um bilhão de reais em valor de outorga para ficar com seus trens confinados dentro da Norte-Sul, sem poder chegar aos portos.
A autorização de trafegar pela ferrovia explorada por outra empresa é o chamado “direito de passagem”. Seria essencial que o “direito de passagem” estivesse claramente definido no edital de forma a atrair o maior número possível de interessados ao leilão. O governo Temer, porém, apenas prometeu no edital que celebrará contratos para um “direito de passagem” de apenas cinco anos, quando o contrato de concessão da ferrovia ora licitada terá 30 anos! Para os outros 25 anos, o governo promete encontrar uma solução quando celebrar novos contratos de prorrogação antecipada com essas concessionárias. Enfim, na parte mais relevante do edital, só existem promessas de soluções. O atual governo manteve a insegurança no ar e nos trilhos.
Assim, a Vale, VLI e Rumo poderão participar do leilão em situação vantajosa frente a hipotéticos concorrentes. Ademais, é ínfimo o valor da outorga pedida como lance mínimo. No leilão do Trecho Norte, em 2007, cobraram-se, em valores atualizados, R$ 2,8 bilhões, com entrada de 50% e quatro anos para pagamento total, por 720 quilômetros de ferrovia. Neste edital, com concessão de 1.537 quilômetros, o governo está pedindo só R$ 1,3 bilhão, com apenas 5% de entrada e 28 anos para pagar.
O edital também não obriga a empresa vencedora a transportar passageiros, o que seria desejável especialmente no sudeste goiano, que possui cidades com maior densidade populacional. É oportuno lembrar que a Vale já é obrigada a transportar passageiros no Maranhão e entre Belo Horizonte e Vitória, na estrada de ferro Vitória-Minas.
O atual ministro da Infraestrutura comentou com desdém sobre o transporte de passageiros: “... Não há demanda. Você já marcou uma festa com a sua família em Porto Nacional, no Tocantins?” É óbvio que a nova ferrovia irá contribuir para o desenvolvimento desses municípios, ao longo dos 30 anos da concessão. Assim, ao invés de reforçar a visão econômica das empresas — que só querem transportar carga —, o governo deveria impor-lhes o transporte de passageiros, o que não seria novidade.
O TCU, que tem o dever de assegurar que a licitação seja competitiva, foi leniente com a pressa do governo em licitar uma ferrovia, que poderá assegurar à Vale, VLI e Rumo, juntas ou separadas no leilão, o domínio completo das ferrovias do Centro-Norte brasileiro.
Parodiando a poesia de Ferreira Gullar, que colocou letra no “Trenzinho do caipira", de Villa-Lobos, “lá vai o trem sem menino, lá vai o trem sem destino, correndo vai pela terra, mas não irá pelo mar”. Ainda há tempo para o TCU e o Ministério Público revisarem o edital da Norte-Sul e recolocá-lo nos trilhos.
O Globo