sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Reino Unido deixa a União Europeia com ato pró-brexit em clima de Réveillon

LONDRES
O brexit, enfim, aconteceu. Depois de três anos e meio do referendo votado pelos britânicos e três adiamentos de prazo, o Reino Unido iniciou sua separação da União Europeia (UE) nesta sexta-feira (31), após 47 anos como membro. É o primeiro dos 28 países a sair do bloco desde sua criação, em 1958.
Em Londres, a noite histórica foi comemorada pelos apoiadores do brexit na praça do Parlamento. Eles começaram a encher o gramado entre o Palácio e a Abadia de Westminster no início da tarde e ali ficaram, mesmo com frio e garoa, até a hora tão esperada.
No momento que oficializou a saída, às 23h (horário local, 20h em Brasília e 0h em Bruxelas, onde fica a Comissão Europeia), a celebração ganhou ares de Réveillon. 
 
Pela praça do Parlamento cheia de bandeiras do Reino Unido, as Union Jacks, circularam britânicos com placas com frases como “independence day” (dia da independência) e “our country again” (nosso país de novo), cartazes com ataques a emissoras de TV e de apoio a Boris e ao presidente dos EUA, Donald Trump.
Pouco depois das 21h, um palco montado na lateral da abadia conduziu o público. Empresários e políticos que ficaram famosos por defender o brexit discursaram, como Tim Martin, dono de uma rede de pubs, e Michelle Dewberry, que venceu a versão inglesa do reality show “O Aprendiz”.
Às 22h (19h em Brasília), o primeiro-ministro Boris Johnson, ciente de que metade do país ainda se sente derrotada e com movimentos de independência ganhando força, foi à TV pregar a união. "Nosso trabalho como governo, o meu trabalho, é unir o país e nos levar adiante", disse.
"É o início de uma nova era em que não aceitamos mais que suas escolhas de vida, as escolhas de vida da sua família, dependam de qual parte do país você cresceu", afirmou. "Este é o momento em que começamos a nos unir e a subir de nível."
Boris prometeu ainda uma "nova era" de cooperação com a UE e disse esperar que a saída se torne um "sucesso impressionante". "Isso não é o fim, mas um começo", disse. "Nós desejamos que esse seja o começo de uma nova era de cooperação amigável entre a UE e uma Grã-Bretanha cheia de energia."
No mesmo horário, uma projeção de luzes na fachada da residência oficial do primeiro-ministro, no número 10 da rua Downing, iniciou a contagem regressiva da última hora antes do brexit. 
Alvo de debate nas últimas semanas, o sino do Big Ben, o relógio que fica na torre do Parlamento, não badalou. A torre está em reforma e, para que o sino fosse reativado, o custo seria de 500 mil libras para os cofres públicos. Alguns presentes, no entanto, levaram seus próprios sinos. 
Organizado pelo grupo Leave Means Leave (sair significa sair), o evento teve como estrela Nigel Farage, político que defende a saída do Reino Unido da UE há quase 30 anos. 
Líder do Partido do Brexit, ele comandou a contagem regressiva. Junto a outros 72 representantes britânicos, deixou nesta sexta seu cargo no Parlamento Europeu.
Esse é um dos poucos efeitos imediatos do brexit. Os eurodeputados do Reino Unido não participarão mais das decisões tomadas pela Casa, e o país encerrou sua atuação em todas as instituições e os compromissos da UE.
Nesta sexta, o Parlamento Europeu e outras instituições ligadas ao bloco, como o Conselho da UE, retiraram as bandeiras do Reino Unido de suas fachadas nas sedes em Bruxelas e em Estrasburgo (França). A bandeira da União Europeia, por sua vez, foi removida da embaixada britânica na UE em Bruxelas. 
Bandeira do Reino Unido é substituída pela da União Europeia na sede do Parlamento Europeu, em Bruxelas
Bandeira do Reino Unido é substituída pela da União Europeia na sede do Parlamento Europeu, 
em Bruxelas - Kenzo Tribouillard/AFP
Já o livre comércio e a circulação de pessoas não serão alterados até pelo menos 31 de dezembro de 2020. Essa é a data para o fim do período de transição que começa agora e, durante o qual, Reino Unido e UE terão que negociar e definir os detalhes das regras que vão reger a nova relação. 
Outro vencedor desta noite foi Boris, que assumiu o cargo em julho de 2019 com a promessa de concretizar o brexit. Líder do Partido Conservador, ele foi um dos políticos por trás da campanha do Vote Leave (vote pela saída) durante o referendo de junho de 2016. 
O brexit foi decidido ali: 52% dos britânicos votaram a favor da saída do país do bloco, enquanto 48% foram contra. 
Uma divisão não só entre os eleitores (17,4 milhões x 16,1 milhões), mas também entre os países que formam o Reino Unido. Enquanto Inglaterra (53,4%) e País de Gales (52,5%) tiveram maioria pró-brexit, Escócia (62%) e Irlanda do Norte (55,8%) tiveram maioria contra.
O argumento dos eurocéticos é que a União Europeia impõe controle excessivo sobre os países, ameaçando suas escolhas e decisões.
“Esperamos muito tempo por este dia. Amo a Europa, mas detesto a União Europeia. Eles querem nos controlar, fazer nossas leis, pegar nosso dinheiro”, diz Julie, educadora que prefere não revelar o sobrenome e veio de Yorkshire (320 km de Londres) para a festa do brexit.
“Queremos fazer comércio com outros países, especialmente os da Commonwealth, não só um pequeno bloco de 28 países”, afirmou.
Para Julie, a pior parte da espera de mais de três anos foi ser considerada “racista” e “sem inteligência” por grupos antibrexit. “Fomos estereotipados de uma forma muito ruim, demonizados. É horrível.”
“Agora poderemos fazer o que quisermos, quando quisermos, porque todas as leis e regulações serão feitas aqui em Londres, e não na Europa”, comemorava Kevin Russell, que veio de Milton Keynes (74 km da capital).
Pela manhã, o discurso da primeira-ministra escocesa, Nicola Sturgeon, foi na direção oposta do de Boris. Líder do partido nacionalista escocês (SNP) e antibrexit, ela disse que o momento era de "tristeza tingida de raiva" e que a independência da Escócia "nunca esteve tão próxima". 
"O brexit colocou a Escócia no caminho errado. Precisamos voltar para o caminho certo assim que possível", afirmou.
Em Londres, onde 60% dos eleitores votaram pela permanência na UE, o prefeito Sadiq Khan declarou que a cidade vai "continuar recebendo ideias e talentos de todas as partes do mundo, independentemente da cor da pele, do passaporte e da bandeira nacional".
Na tarde de sexta, ele abriu a prefeitura para oferecer "apoio jurídico e emocional" para cidadãos da UE que residem na capital. 
Das mais de 3 milhões de pessoas da UE que vivem no Reino Unido, 1 milhão está na cidade. E todos os que estão no país há mais de cinco anos podem se inscrever, até junho de 2021, em um programa de permanência de longo prazo, chamado de "settlement scheme". 
Parte desses europeus do continente participou na quinta de mais uma rodada de protestos antibrexit, com vigílias e caminhadas para lamentar a “despedida".
Mas a noite foi mesmo dos que se opõem à União Europeia. E não só britânicos. Uma dezena de franceses aproveitou a ocasião para divulgar o movimento "frexit". 
“Hoje, com a União Europeia, a França não pode fazer nada por sua economia. Viemos aqui para mostrar que muitos franceses também querem sair do bloco”, diz Mattis Lebrun, estudante parisiense que mora em Bristol (170 km de Londres).

Michele Oliveira, Folha de São Paulo