quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

"Coronavírus se concentra em áreas que geram mais da metade do PIB chinês", segundo Rodrigo Zeidan

“Quem quiser, pagamos para ir para casa.” Esse comunicado foi feito pela Universidade de Duke, que fica em Kunshan, cidade vizinha a Xangai que, por sua vez, é a maior da China, importante centro financeiro e empresarial com o qual o Brasil tem muitas conexões.
A mensagem retrata o clima que se instalou no país. O risco do coronavírus até pode ser baixo se comparado ao de outra enfermidade, a Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave), que se espalhou pela China de 2002 a 2004, mas não querem as pessoas circulando pelas ruas, ampliando o risco de contágio e o pânico.
Originalmente, a China, que segue o calendário lunar, entra num grande feriado nacional, por uma semana, para comemorar o seu Ano-Novo. Cerca de 600 milhões de pessoas se locomovem pelo país entre o local de trabalho e a residência original para festejar com a família.
Neste início de ano, o feriado foi agendado para ocorrer de 24 a 30 janeiro –bem no momento em que o novo vírus se manifestou e se alastrou.
A alternativa institucional tem sido tentar conter o trânsito de pessoas para impedir que o vírus se espalhe, e o feriado já foi estendido até o dia 2 de fevereiro para toda a China. Muitas empresas já anunciaram que só retomarão a atividade entre 8 e 10 de fevereiro.
Mas uma epidemia não é só uma questão de saúde pública. Também afeta a saúde econômica –e o contágio ocorre aí também.
Avaliando a relação entre a geração de riqueza das 33 províncias chinesas e o contágio da população pelo coronavírus é possível observar que a doença avança em áreas importantes para a economia.
As 11 províncias com mais de 100 casos confirmados da doença no país –5.311 do total de 6.070– respondem por 54% do PIB (Produto Interno Bruto).
Passaria de 60%, se fosse considerado Jiangsu, já com 99 registros, que responde por mais de 10% do PIB chinês. Nela se localiza Hangzhou, cidade onde foi fundada a Alibaba, gigante global do ecommerce, mas também conhecida como uma das cidades mais bonitas do país –um ditado chinês diz que o céu fica acima e Hangzhou abaixo.
Como o registro de novos casos avança minuto a minuto, os dados desta reportagem foram consolidados até as 21h desta quarta-feira (29) –e estarão aumentando e enquanto é lida.
Para se ter uma ideia do avanço do coronavírus, quando a coleta de informações para este texto teve início, na tarde de terça-feira (28), o número de infectados na China era de cerca de 4.500, sete cidades tinham mais de 100 casos e respondiam por 36% do PIB.
Nas lista das que superaram 100 registros está Guangdong, novo nome de Cantão –vizinha de Macau e Hong Kong–, que já tem 277 registros da doença sem casos fatais.
Nessa província fica Shenzhen, berço das reformas de mercado que alavancaram o desenvolvimento chinês, e o maior polo de produção de eletrônicos do mundo.
A província também é a maior exportadora da China e sozinha vende para o exterior mais de US$ 650 bilhões por ano, o que corresponde a mais de um quarto de todas exportação do país.
Henan, considerada um dos berços da civilização chinesa, tem 206 infectados e duas mortes. Ela foi pioneira na Bolsa de Futuros para produtores do campo na China, mas ainda tem várias vilas rurais pobres, o que vai demandar atenção redobrada do governo.
O coronavírus contaminou 221 pessoas em Hunan, a província natal do líder Mao Tsé-Tung, hoje centro de comércio global com mais de 300 empresas atuando nas áreas de importação e exportação.
Duas províncias muito importantes estão paralisadas parcialmente por causa do avanço da doença: Hubei (onde a capital, Wuhan, é o marco zero da propagação do coronavírus, com quase 60% dos infectados do país e 125 mortos) e Xangai, que equivale à cidade de mesmo nome, e onde 96 casos foram notificados.
Wuhan é polo da indústria de transporte. Atua como centro global de pesquisa de veículos elétricos e é responsável pela produção de mais de 60% de trilhos para trens de alta velocidade fabricados no país.
Com seus 11 milhões de habitantes (3 milhões são migrantes semilegais), é a 20ª cidade mais rica da China, com PIB per capita (Produto Interno Bruto dividido pelo número de habitantes) de R$ 86.714 por ano –quase o triplo da média brasileira.
Um morador local tem renda só um pouco menor que o de Xangai, onde moram 27 milhões de pessoas (a província de Hubei, como um todo, tem PIB per capita de metade do de Wuhan).
Hubei e Xangai, juntas, têm um PIB de US$ 1,15 trilhão (R$ 4,85 trilhões). Para se ter uma dimensão do que isso representa, o valor corresponde a mais de dois terços de todo o PIB brasileiro. E, neste momento, ambas as províncias estão funcionando a meia-bomba.
O potencial impacto econômico é grande, ainda que tudo na China tenha escala muito maior que no resto do mundo.
Apesar de não ter um peso grande no PIB (cerca de 3,6%), Xangai atua como um dos mais importantes pontos de conexão da China com o mundo.
Seu comércio exterior é superior a todo o comércio internacional brasileiro. Xangai, com um dos maiores portos do mundo, tem corrente de comércio (exportações mais importações) de mais de US$ 500 bilhões.
No Brasil, esse total foi de pouco mais que US$ 400 bilhões em 2019.
Hoje, Xangai tem barricadas. Quem quiser entrar de carro e tiver algum sintoma que indique risco de infecção vai para uma quarentena, num hotel indicado pelas autoridades locais.
Ninguém, afora quem atua em serviços essenciais, deve voltar ao trabalho antes das 23h59min de 9 de fevereiro. Escolas e universidades só devem reabrir dia 17 de fevereiro, se não houver novo adiamento.
Não se aventa a possibilidade de a cidade parar com toda a atividade econômica. Seria desastroso.
A questão que ninguém consegue responder com muita clareza é a velocidade com que a rotina vai voltar ao normal –não apenas em Xangai, mas em toda a China, criando condições para a economia se regenerar.
O custo econômico de uma epidemia vai muito além dos dias perdidos por quem ficou doente e do aumento de custos do sistema de saúde. A paralisação parcial ou total de uma cidade pode jogar a atividade econômica para baixo, chegando a causar recessão e desemprego.
Normalmente, as indústrias chinesas não recuperam a capacidade plena até cerca de dois meses depois das festas de Ano-Novo, já que muitos trabalhadores, migrantes, que foram para casa, acabam não retornando.
Esse ciclo de trabalhar a todo vapor no resto do ano e ir diminuindo nos dias anteriores e posteriores ao início do ano é o normal no país. Em 2019, por exemplo, as exportações caíram de US$ 217 bilhões em janeiro para US$ 135 milhões em fevereiro, por conta do feriado.
Mas e com o vírus? A resposta vai depender dos próximos passos dos governos locais (que têm bastante autonomia, ao contrário do imaginado fora do país) e do governo central.
Wuhan está quase paralisada, sem transporte público e sem a população poder entrar e sair. Não devem faltar mantimentos, já que os chineses são bons em logística.
Mas o PIB da cidade, atualmente em US$ 200 bilhões, vai despencar. Isso pode ser temporário, como na greve dos caminhoneiros do Brasil, que tirou 1,2 ponto percentual do PIB do país, mas é possível que a perda local passe dos dois dígitos e que demore anos para a economia se recuperar.
A retração da economia em Xangai vai afetar o Brasil. De lá, importamos manufaturados, plataformas de petróleo, circuitos impressos e muitos outros bens intermediários e de capitais da China. Embora menos que no resto do mundo, muitas empresas brasileiras fazem parte das cadeias globais de valor.
Problemas em Xangai causariam danos às empresas industriais brasileiras e também para os exportadores do país. É difícil ainda medir o potencial de danos. Algumas importações poderiam ser adiadas, exportações poderiam ir para outros portos. Mas tudo isso tem custos.
A China, afinal, é o principal parceiro comercial do Brasil. Num país que ainda patina, como o nosso, qualquer solavanco comercial pode gerar mecanismos de retroalimentação negativos, tornando nossa recuperação econômica ainda mais lenta.
Uma possível comparação da paralisação parcial de cidades chinesas é com Hong Kong, onde protestos contribuíram para a primeira recessão da província chinesa desde a crise global de 2008.
A economia de Hong Kong encolheu 3,2% de julho a setembro de 2019, em comparação com o mesmo período de 2018. Um impacto similar em Hubei e Xangai seria de US$ 37 bilhões.
Se a crise se espalhar para outras cidades e desacelerar o PIB chinês em 1,2 ponto percentual, como no caso brasileiro, o total seria de US$ 170 bilhões, uma montanha de dinheiro.
Rodrigo Zeidan  é professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ

Folha de São Paulo