terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

A conquista do cinturão que fez Cassius Clay se tornar Muhammad Ali, há 55 anos

Após ver Liston ir à lona, Muhammad Ali ainda provoca o oponente
Pedro Madeira*
O boxe hoje não tem mais o tamanho que tinha há 50 anos, e muita gente nascida de lá pra cá tem só uma ideia de quem foi Muhammad Ali. Mas este americano de Louisville, no Kentucky, foi muito mais que um campeão mundial. Foi um mito. Um atleta que aliou o esporte à política de forma sem precedentes, usando sua voz para criticar a brutal discriminação contra os negros em seu país. Em 1999, foi eleito o "Esportista do século" pela revista "Sports Illustrated" . Mas, até o dia 25 de fevereiro de 1964, aos 22 anos, o pugilista era ainda uma promessa, um jovem arrogante com muito o que provar. Tudo mudou quando ele derrubou as bancas de aposta ao derrotar o então campeão mundial Sonny Liston, há 55 anos.
Até aquele dia, Ali se chamava Cassius Clay. Ele se credenciou para desafiar o campeão dos pesos pesados graças a uma ascensão que começou com o ouro nas Olimpíadas de Roma, em 1960. Mas a rapidez e a potência do lutador não reduziram o favoritismo de Liston, que vinha de 28 vitórias seguidas. Só quem acreditava na vitória de Clay era ele próprio. Aliás, ele tinha tanta certeza de que venceria que suas provocações antes da luta entraram para a história. "Se Sonny Liston me derrotar, eu beijarei seus pés no ringue, rastejarei de joelhos para fora do ringue, direi que ele é o maior e pegarei o primeiro voo para fora do país”, disse. “Depois que eu derrotá-lo, vou doá-lo para o zoológico", garantiu o jovem desafiante.
Na matéria do O Globo, cinco dias após a vitória de Ali, o texto chama atenção para a teatralidade do pugilista
- Os americanos o acharam excepcional. Ele foi um cara muito especial dentro do boxe pela inteligência. Toda a provocação para as lutas não passava de uma grande publicidade. A história dele foi fantástica - relembra o jornalista Newton Campos, de 94 anos, vice-presidente honorário do Conselho Mundial de Boxe, que já cobria o esporte dos ringues na época da luta contra Liston. - Com as pernas felinas, Ali escapava por todos os lados e se aproveitava no contra-golpe. O melhor golpe dele era o jab de esquerda, que mantinha o adversário à distância. Quando arranjava uma brecha, entrava com um soco certeiro de direita. Ele confundia todos os adversários, era um peso-pesado com a agilidade de um peso-leve.
Dentro de um Convention Hall, em Miami Beach, lotado com quase 9 mil espectadores, e sabendo que milhões de aparelhos de rádio em seu país e no mundo estavam sintonizados com a luta, o petulante boxeador levantou o cinturão após um nocaute técnico, no sexto round. Lesionado no ombro por um golpe de Clay logo no primeiro round, Liston, também conhecido como "Grande Urso", não podia mais lutar. Ao final do combate, o novo campeão deu um último golpe naqueles que davam como certa a vitória de Liston: “Agora comam suas palavras. Ajoelhem-se diante de mim. Eu sou o rei do mundo”. Na mesma noite, Cassius rebatizou-se como Muhammad Ali e aprofundou seu discurso de combate ao racismo nos EUA.
Muhammad Ali esquivando dos golpes do
- Ali chegou a dar um baile. Mas o “Urso” tomou um golpe no ombro logo no primeiro round. Em determinado momento da luta, a lesão de Liston o impediu de continuar. Esse problema no braço ajudou muito Ali no ringue - comenta Newton Campos, que era jornalista da Gazeta do Esporte e, em 1974, chegou a cobrir a "Luta do Século", entre Muhammad Ali e George Foreman, no Zaire (atual Congo).
Depois daquela vitória, a vida de Ali não seria mais a mesma por vários motivos. Crescido no Kentucky, um estado onde a segregação racial, na época, era institucionalizada, o atleta conviveu com o preconceito desde que se entende por gente. Mesmo depois de ganhar a medalha de ouro nos Jogos de Roma, em 1960, ele foi impedido de jantar com um amigo num restaurante exclusivo para brancos. O pugilista brigou com os funcionários e, segundo sua autobiografia, "O melhor: Minha própria história", arremessou a medalha nas águas do Rio Ohio. Após vencer o cinturão, Ali usou a fama para ampliar o alcance de todas as suas críticas à sociedade, algo que não foi bem aceito pela "elite americana". 
- No seu apogeu, Ali lutava a cada 45 dias e abarrotava o ginásio. De repente (em 1966), ele foi chamado para servir o Exército (na Guerra do Vietnã). No meu entendimento, toda aquela retórica provocativa deixou muita gente chateada, e tentaram obrigá-lo a servir. Como ele se recusou, impediram Ali de lutar por três anos e tiraram o título dele - explica Newton Campos
Muhammad Ali comemora a vitória no ringue com sua equipe
LESÃO CONTROVERSA
A tal lesão no tendão do ombro de Liston ainda é motivo de opiniões divergentes até hoje. Ao livro “O rei do mundo - Muhammad Ali e a ascensão de um herói americano”, do jornalista David Remnick, o corner de Liston afirmou que a lesão não era o suficiente para Liston não voltar ao ringue. Ao mesmo tempo, um dos catedráticos” da imprensa esportiva americana, Tex Maule escreveu à época que a lesão foi legítima, dada a dificuldade do “Urso” em levantar os braços no decorrer da luta. Polêmicas à parte, o título chamou a atenção da sociedade americana a essa personalidade irreverente e política - como se veria mais tarde.
Pedro Madeira, O Globo