segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

"Estabilidade financeira em tempos anormais", por Kenneth Rogoff

Uma década após a crise financeira global de 2008, os políticos constantemente nos asseguram que o sistema é bem mais seguro nos dias de hoje. No meio do colapso, os gigantescos bancos redimensionaram suas apostas de risco, e todos — investidores, consumidores e banqueiros centrais — ainda estão em alerta máximo. Os reguladores têm trabalhado duro para garantir maior transparência e responsabilidade no setor bancário. Mas estamos realmente tão seguros?
Normalmente, alguém diria “sim”. O tipo de crise financeira global sistêmica que explodiu há uma década atrás não é como uma típica recessão septenária. A frequência muito menor de crises sistêmicas reflete duas realidades: os políticos respondem com reformas para prevenir sua recorrência, e normalmente leva muito tempo para que investidores, consumidores e políticos esqueçam a última crise.
Infelizmente, nós não vivemos em tempos normais. Um processo de gestão de crise não pode ocorrer no piloto automático, e a segurança do sistema financeiro depende criticamente da competência das pessoas que o administram. A boa notícia é que os principais bancos centrais ainda possuem, no geral, excelentes funcionários e líderes. A má notícia é que a gestão de uma crise envolve todo o governo, não somente as autoridades monetárias. E é aqui que há espaço para dúvidas.
Com certeza, se a próxima crise for exatamente como a última, qualquer gestor político pode simplesmente seguir os passos dados em 2008, e as consequências serão provavelmente tão efetivas quanto. Mas e se a próxima crise for completamente diferente, resultado, digamos, de um forte ataque cibernético ou de um aumento inesperadamente rápido nas taxas de juros reais globais, atingindo mercados frágeis em razão das dívidas de alto risco? Alguém consegue afirmar, honestamente, que o governo do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tem habilidade e experiência para lidar com um grande colapso? É difícil saber, porque a única crise real que os EUA enfrentam até agora durante a presidência de Trump é, bem, a presidência de Trump.
O presidente do Banco Central dos EUA, Jay Powell, e sua equipe são profissionais de primeira linha, mas quem serão os outros adultos na sala caso ocorra uma crise financeira gerada externamente? O BC não pode tomar as rédeas e fazer tudo sozinho; é preciso tanto de apoio político quanto financeiro do resto do governo. Na verdade, ele teria ainda menos margem de manobra do que em 2008, porque as reformas financeiras da Lei Dodd-Frank, de 2010, restringiram fortemente sua capacidade de resgatar instituições privadas, ainda que o sistema inteiro corra o risco de entrar em colapso. Um Congresso polarizado o ajudará? Ou talvez Steven Mnuchin, que produziu filmes de Hollywood antes de se tornar secretário do Tesouro dos EUA, possa usar insights de seu papel como ator no filme de 2016 “Regras não se aplicam”.
A Europa tem problemas parecidos, ou até piores. Com o populismo alimentando uma forte desconfiança e divisões, a resiliência financeira é certamente bem menor do que a de uma década atrás. Olhemos para o Reino Unido, o outro grande centro financeiro global, onde a elite política levou o país à beira do precipício do Brexit. Pode-se esperar, de fato, que eles consigam controlar com competência uma crise financeira que requer decisões políticas complicadas e pensamento rápido? O Reino Unido tem a sorte de possuir uma equipe muito boa em seu Tesouro, assim como em seu Banco Central, mas até mesmo os mais brilhantes acadêmicos têm o seu trabalho limitado se os políticos não lhes derem cobertura.
Enquanto isso, do outro lado do Canal da Mancha, uma divisão profunda sobre a repartição de ônus na zona do euro tornará mais difícil a implementação de uma política convincente para lidar com uma série de grandes estresses. Um aumento significativo nas taxas de juros reais globais, por exemplo, poderia causar estragos nos fragmentados mercados endividados da zona do euro.
Mas não seriam os outros 20 a 40 anos antes da próxima grande crise financeira tempo suficiente para se preparar? Espera-se que sim, mas está longe de ser certo. Mesmo que as regulamentações tenham sido bem-sucedidas em conter riscos para os bancos, é provável que as principais fontes de risco tenham simplesmente migrado para a “sombra” menos regulada do sistema financeiro. O que sabemos,  com certeza,  é que o sistema financeiro global continua a se expandir, com a dívida global agora chegando a US$ 200 trilhões. Uma melhor regulamentação financeira pode ter ajudado a conter o crescimento do risco ao mesmo patamar, o que não significa que ele esteja necessariamente encolhendo.
Por exemplo, embora os grandes bancos pareçam correr menos riscos “no papel”, os reguladores precisam trabalhar duro para monitorar a dívida que migrou para o sistema financeiro paralelo e que pode crescer rapidamente, como aprendemos em 2008 da maneira mais difícil. Reguladores são rápidos em apontar para os colchões maiores de ativos “líquidos” dos bancos para combater corridas aos depósitos e de rolagem de dívidas. Infelizmente, ativos que são líquidos em tempos normais muitas vezes acabam se comportando de forma contrária durante uma crise.
Os formuladores de políticas estão certos em dizer que tiveram melhorias no sistema desde 2008. Mas as reformas graduais que foram implementadas estão muito aquém do que é mais necessário: exigir que os bancos levantem uma parte maior de seus financiamentos por meio da emissão de ações (ou reinvestindo dividendos), como os economistas Anat Admati de Stanford e Martin Hellwig do Max Planck Institute têm argumentado. Infelizmente, um sistema financeiro que cresce inexoravelmente, combinado com um ambiente político cada vez mais tóxico, significa que a próxima grande crise financeira pode surgir mais cedo do que você imagina. 
Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do FMI, é professor de Economia e Política Pública na Universidade de Harvard

O Globo