O Estado de São Paulo
A inflação é uma maldição antiga, um truque velho como o diabo, e sua
antiguidade e vilania fazem crer que está destinada a nos acompanhar pela
eternidade
A inflação foi inventada, ao menos na literatura, por Goethe, o campeão
iluminista, na segunda parte da tragédia de Fausto (conhecida como Fausto 2),
publicada postumamente em 1833, quase 60 anos depois da primeira parte, a mais
popular, onde o erudito vende sua alma ao diabo em troca de uma experiência
transcendente.
No Fausto 2, Goethe leva o herói para os enredos da economia, e logo no
primeiro ato, assistimos nada menos que a invenção do papel moeda. É
Mefistófeles em pessoa, falando pela boca do astrólogo e com alusões à pedra
filosofal, quem ensina a um Rei, em uma noite de carnaval, o truque de pintar
pedaços de papel para pagar as contas de um reino em dificuldades. O mundo nunca
mais seria o mesmo. Na aguda observação de um crítico: "O ouro ... emblema de
Apolo, dos príncipes e dos poetas, dos avaros e alquimistas, deixa de ser o
símbolo universal da riqueza, a balança que mede nossos desejos e nossas
necessidades. Uma mísera folha de papel com a assinatura de um banqueiro o
substitui."
Nada há de acidental ou efêmero nessa narrativa, composta por um conhecedor
do trágico experimento pioneiro de John Law (1671-1729) e testemunha dos
Assignats durante a Revolução Francesa, duas das mais sensacionais catástrofes
monetárias jamais havidas. A ideia nova e revolucionária - segundo a qual o
dinheiro é mera convenção estabelecida em leis, um pedaço de papel associado a
uma promessa vaga - resulta em criar incomensurável tentação nos poderosos, uma
tensão insolúvel entre meios - supostamente diabólicos, ou ao menos artificiais
- e fins, até nobres, ou não, conforme a escolha dos soberanos.
O "pacto fáustico" passa a fazer parte do cotidiano dos governantes, eis que
o "golpe de caneta" com o qual o soberano cria poder de compra através de papéis
pintados, ou truques contábeis, funciona como uma espécie de alquimia, agora
praticada por economistas, porém muito mais efetiva que a tentativa de
transmutar chumbo em ouro.
O caso dos Assignats franceses, criados em 1789 como títulos a serem usados
para a aquisição das terras tomadas à Igreja, contém um detalhe delicioso. Em
1790, os Assignats foram transformados em dinheiro pelo voto democrático da
Assembleia Nacional e Mirabeau, o influente e inflamado deputado e orador, foi
cândido ao ressaltar a diferença entre o experimento da Assembleia e o de John
Law: "Não haverá excessos", ele dizia, pois "a nação francesa tinha se tornado
iluminada", e a administração dos novos papéis seria feita por "patriotas".
O delírio de Mirabeau deve ser visto como uma maldição duradoura sobre a
relação entre o voluntarismo e as leis econômicas: embriagados por uma
superioridade moral autoconferida, um parlamento repleto de demagogos autorizou
a emissão desmesurada de meios de pagamento e mais adiante o enforcamento para
os que desrespeitassem o controle de preços exercido pelas autoridades
revolucionárias.
Seguindo-se à invenção do papel moeda, Fausto e Mefisto passam a trabalhar
juntos, e ambos utilizam truques e encantamentos (que já não parecem muito
sobrenaturais) para produzir progresso e riqueza sem qualquer preocupação com
seus custos ou com os cadáveres que deixam para trás. Fausto empreende grandes
obras, constrói cidades e canais, e nesse caminho comete inúmeras atrocidades
pelas quais, ao final, é surpreendentemente absolvido, pois, conforme o
julgamento dos céus sobre o destino de sua alma, "os erros não reduzem o valor
das realizações ou da insatisfação crônica do homem que aspira".
Marshall Berman define o Fausto 2 como a tragédia do desenvolvimento e
utiliza a expressão "modelo fáustico de desenvolvimento" para designar "uma nova
síntese histórica entre poder público e poder privado, simbolizada na união de
Mefistófeles, o pirata e predador privado, que executa a maior parte do trabalho
sujo, e Fausto, o administrador público, que concebe e dirige o trabalho como um
todo", um enunciado perfeito para o que normalmente se designa como o
"desenvolvimento liderado pelo Estado".
O inflacionismo tem sido a fórmula pela qual o arquétipo fáustico se
estabeleceu no Brasil, pois é a pedra filosofal do desenvolvimentismo, a
cornucópia de onde saem recursos para todos os sonhos. O extrativismo predatório
e a procura infrutífera do Eldorado que marcaram nossas origens facilmente nos
levaram à busca pelo progresso percorrendo o atalho fornecido pela pintura de
pedaços de papel.
Assim desbravamos a natureza, estabelecemos a industrialização e construímos
Brasília, a capital simbólica da era fáustica. Não há dúvida que a mágica
funciona, ao menos durante um bom tempo. Seguem-se o Milagre Econômico e a Nova
República, que se igualam no inflacionismo redentor, porém cada qual à sua moda,
e com rendimentos decrescentes na forma de custos sociais, humanos e ambientais
que parecem invisíveis no primeiro momento.
Em certo momento a hiperinflação assinala o esgotamento da mágica
inflacionista, e depois da estabilização o País enfrenta uma crise vocacional. O
desenvolvimento baseado nas realidades da economia de mercado e da globalização
parece muito trabalhoso; é grande a demanda por mágica, e daí se explica a
reincidência recente na direção do velho inflacionismo, ainda que envergonhada e
oculta debaixo de uma criativa vestimenta contábil.
Contudo, os velhos truques não funcionam para acelerar o crescimento. O
Brasil aprendeu a alquimia da inflação e a repele, ou dela se defende,
subtraindo-lhe a eficácia. A tragédia do desenvolvimento de Goethe reside tanto
no sucesso dos modelos mefistofélicos - inflacionários, ditatoriais, excludentes
etc. - quanto na impunidade de seus meios. Mas o que temos assistido não é isso,
mas uma avacalhação sincrética desse enredo: os custos sem o progresso, Mefisto
sem o Fausto, desenvolvimento frustrado, pura energia desperdiçada.
A economia heterodoxa de Dilma Rousseff não parece buscar a prosperidade, mas
um enfrentamento conceitual, uma tentativa de provar que o progresso pode ser
obtido mediante maus tratos sistemáticos ao capital, como quem quisesse exibir
as contradições do capitalismo de um novo prisma. É claro que a tentativa
falhou, e falhará sempre. A heterodoxia sem o diabo do inflacionismo é uma
equação que não fecha, uma arremedo de ilusionismo, uma perda de tempo e
dinheiro.