domingo, 30 de março de 2014

"Não é apenas seca que põe a água na agenda de problemas", editorial de O Globo

Está na hora de o Brasil enterrar a ideia de que rios e lagos banham um paraíso a salvo de crises. Estados e União devem se juntar em torno de soluções técnicas

 
 
 
Mais do que estratégico, a água (assim como o ar) é um recurso vital para o ser humano, insubstituível. Mas nem por isso o país tem tratado os problemas a ela relacionados com a devida responsabilidade, apesar de temas como abastecimento, escassez, secas, energia hídrica e uso agrícola estarem entre as maiores preocupações — de governos, empresas e autoridades ambientais — relativas ao futuro do planeta.

Ao contrário: em razão da abundância dos mananciais em território brasileiro (o Brasil dispõe de 12% das reservas mundiais de água doce), criou-se o mito de que rios e lagos banham um paraíso a salvo de crises.

Tal ideia, em si, é uma falácia. E a isso juntam-se anos de sistemáticas demonstrações de leniência, descompromisso e irresponsabilidades em relação aos cuidados com as reservas de água do país. São atemorizantes tanto o quadro decorrente dessa incúria (com um recurso sem o qual a vida é impossível) quanto as suas causas.

Dados oficiais dão conta de que Rio e São Paulo, atualmente no centro de uma polêmica em torno de fontes de abastecimento, patrocinam inacreditáveis índices de desperdício de água (50% do lado fluminense, 34% no estado vizinho). Mais: levantamento da Fundação SOS Mata Atlântica mostra que a água de pouco menos da metade de 96 rios, córregos e lagos no Sul e Sudeste tem qualidade “péssima” ou “ruim”. Uma realidade em nada semelhante ao Éden.

A equivocada ideia de um paraíso banhado por rios e lagos com leito e espelho d’água infinitos também não se sustenta do ponto de vista da capacidade de exploração dos mananciais. Por uma abençoada predestinação geográfica, o Brasil é, ao menos em tese, uma potência hídrica. Mas deve-se lembrar que 80% de toda a reserva do país estão concentrados nas bacias amazônicas. Isso quer dizer que esse recurso é mais abundante em regiões de magra concentração demográfica — ou, grosso modo, onde há água não há gente, e onde há gente não há água.

Problemas climáticos, que só tornam mais preocupante a proverbial irresponsabilidade do país com a água, acabam por se juntar à leniência na atual conjuntura de seca, cuja mais evidente consequência é a batalha entre os governos paulista e fluminense em torno dos mananciais do Rio Paraíba do Sul. Mas já de alguns anos são emitidos sinais de que o país precisa ter mais responsabilidade, e mesmo parcimônia, com a exploração desse recurso.

A crise que banha Rio e São Paulo comprova que esse não é um problema imediato, e não para o futuro, porque seus efeitos já são visíveis: segundo o “Atlas Brasil — Abastecimento urbano de água”, em 2015 cerca de 55% dos municípios brasileiros já sofrerão algum tipo de impacto relacionado ao abastecimento. Portanto, é questão urgente, a ser tratada com ações compartilhadas entre estados e a União, com soluções técnicas. E, principalmente, sem bravatas ou desvios políticos.