segunda-feira, 31 de março de 2014

"Brics, entre o pragmatismo e a ambição", por Adriana Erthal Abdenur

O Globo

 

Ao buscar status e projeção, o Brasil corre o risco de aderir, de forma passiva, a posicionamentos alheios que não convêm necessariamente aos interesses nacionais

 
Em breve, o Itamaraty deve lançar o primeiro Livro Branco da política externa brasileira. A tarefa é tão bem-vinda quanto delicada, pois o documento requer um equilíbrio bem pensado entre princípios abstratos e metas concretas. No que diz respeito ao Brics, é particularmente importante que o agrupamento seja tratado como um meio, e não como um fim da política externa.

Não se trata apenas de uma questão de semântica. Embora todos os estados busquem aumentar a sua influência na arena internacional, existe uma rampa escorregadia entre o pragmatismo e a busca pelo poder. Como percebemos em diversas ocasiões ao longo da última década, a tentativa de exercer influência, conduzida sem metas claras, leva a um distanciamento excessivo e prejudicial dos objetivos prioritários da política externa brasileira: o desenvolvimento socioeconômico e a paz.

O Brics é uma configuração inédita, cuja flexibilidade permite que o Brasil estreite seus laços com outras potências emergentes em um espírito de contestação às normas e estruturas da governança global. Tudo isso é saudável — na medida em que o Brics confere novo peso às reivindicações históricas que o Brasil mantém no plano internacional.

No entanto, essa aproximação deixa de ser benéfica quando se transforma em projeto de poder caro e arriscado, de retorno incerto para a população brasileira. Ao buscar status e projeção, o Brasil corre o risco de aderir, de forma passiva, a posicionamentos alheios que não convêm necessariamente aos interesses brasileiros, passando a ver o agrupamento, de forma errônea, como uma alternativa que se contrapõe ao paradigma ocidental. Ao fazê-lo, a política externa brasileira põe em xeque as conquistas de autonomia acumuladas ao longo das últimas décadas, pois substitui um polo de atração por outro (o eixo Rússia-China). Optar por um projeto de poder difuso também significa abrir mão da identidade de país democrático que zela pelos direitos humanos — aspecto que fica decididamente em segundo plano quando o Brasil age ou se posiciona via Brics.

O diferencial do Brasil é justamente poder agir como ponte entre diversos mundos, mobilizando apoio e recursos. Se uma ponta da estrutura desaba, perdemos acesso a todo um universo de ideias e oportunidades. Isso vale tanto para o Norte quanto para o Sul. O antagonismo em relação a qualquer grupo de estados leva a uma contradição em termos: uma espécie de “universalismo seletivo” que simplesmente inverte os exageros de outras épocas, em vez de corrigi-los.

Por outro lado, vislumbrar o Brics como mecanismo permite a retomada dos objetivos fundamentais da política externa: o desenvolvimento socioeconômico e a garantia da paz e da estabilidade. O Brics nada mais é que uma plataforma de conveniência, cuja utilidade e relevância variam de acordo com o tema e a conjuntura. Em certos casos, iniciativas e discussões podem, sim, contribuir para os objetivos prioritários. Em outros momentos, é necessário reconhecer que o alinhamento com os demais integrantes do Brics pode não interessar ou, até mesmo, distrair a política externa brasileira das suas metas reais.

O Livro Branco representa um marco importante no diálogo que o Itamaraty constrói com o resto da sociedade brasileira. Após a sua publicação, a atuação do Brasil no exterior será avaliada em relação aos princípios e objetivos nele codificados. A iniciativa oferece uma oportunidade para que o pragmatismo e universalismo da política externa sejam resgatados, a serviço do desenvolvimento e da paz, e de forma a beneficiar a população brasileira.