Ao completarem-se 50 anos do movimento civil-militar de 31 de março de 1964,
é possível ter uma visão mais serena e objetiva, tanto das condições que levaram
a ele como dos primórdios do regime então implantado e o seu desvio do curso
original imaginado, em especial, pelas lideranças civis. Facilitado pela
perspectiva de meio século, esse esforço de compreensão dos fatos, assim como de
seu dramático contexto histórico, é importante, sobretudo, para as novas
gerações.
O governo do presidente João Goulart teve sua origem numa crise - a da
renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961 - e em crise viveu até ser
deposto. Goulart nunca se conformou com a solução de compromisso que, vencendo a
resistência dos ministros militares, possibilitou sua posse - a instauração do
parlamentarismo, no qual dividia seus poderes com o primeiro-ministro.
Ao mesmo tempo que se esforçava para conseguir a volta do presidencialismo, o
que aconteceu com o plebiscito de janeiro de 1963, Goulart mobilizou sindicatos
e lideranças radicais para impor as chamadas reformas de base "na lei ou na
marra". Reformas de cunho socialista, embora ele não tivesse mandato popular
para isso, pois foi eleito vice - e não em sua chapa, como então permitia a lei
eleitoral - de um presidente nitidamente conservador. Nem para sua tentativa de
dar papel preponderante aos sindicatos na condução do País, no que foi chamado
de república sindicalista.
Assistiu-se então a uma mistura explosiva de avanço desses grupos para o
controle do Estado e de desordem na economia e na administração. O líder
comunista Luís Carlos Prestes chegou a dizer que os comunistas já estavam no
governo, embora ainda não no poder. Leonel Brizola criou as unidades
paramilitares "Grupos dos 11". A economia degringolava, com inflação alta e
baixo crescimento.
O quadro se completa com a revolta dos sargentos, em setembro de 1963, e com
a dos marinheiros, em 25 de março de 1964, que, atingindo em cheio a disciplina,
espinha dorsal das Forças Armadas, colocou os militares em choque direto com o
governo e precipitou sua intervenção. A reação de lideranças civis e da maioria
da população ficou evidente na grande "Marcha da Família com Deus pela
Liberdade", que reuniu 500 mil pessoas em São Paulo, em 19 de março. Em 13 de
março, no famoso Comício da Central, no Rio, em defesa das reformas de base,
Goulart reunira bem menos apoiadores - 150 mil. Marchas semelhantes foram feitas
em outras capitais. E sua deposição foi comemorada por 1 milhão de pessoas no
Rio, no dia 2 de abril.
É importante assinalar que tudo isso se passou em meio à guerra fria. Para os
Estados Unidos e seus aliados, era intolerável a possibilidade de o Brasil
aderir ao campo comunista. Recorde-se que em outubro de 1962, por causa da
recusa dos Estados Unidos de aceitar a presença em Cuba de mísseis ali colocados
pela União Soviética, o mundo esteve à beira de uma guerra nuclear. Este era um
dado incontornável da realidade.
Com base no Ato Institucional baixado pelos militares, o governo do marechal
Castelo Branco começou um bem-sucedido trabalho de saneamento das finanças e
reorganização político-administrativa do País. Na economia e na modernização da
administração, o regime obteve inegáveis êxitos. O mesmo não aconteceu na
política.
O Ato Institucional n.º 2, o AI-2, de 27 de outubro de 1965, desviou o
movimento de seu rumo. Mais grave do que extinguir os partidos foi, como
assinalou o Estado em vários editoriais - notadamente os de 28 e 29 de outubro
-, tornar permanentes medidas de emergência, excepcionais e transitórias,
destinadas a recolocar o País no caminho democrático. O AI-2 marca o afastamento
do Estado do movimento. A sua componente civil foi definhando e ele se tornou
essencialmente militar. Começou ali o processo que levou ao autoritarismo e ao
arbítrio do AI-5, à censura, à repressão, ao cerceamento das liberdades civis e
dos direitos individuais.
A redemocratização viria ao fim de duas décadas de arbítrio, graças à
persistência de milhares de brasileiros que se comportaram de forma pacífica e
ordeira, repudiando tanto a violência empregada por aqueles que escolheram
equivocadamente a luta armada quanto a brutalidade dos agentes do regime de
exceção.