domingo, 30 de março de 2014

"A banalização do mal", por Tony Bellotto

O Globo
 
 

Comentamos com ar distraído sobre como estamos todos “anestesiados” pela violência e de como perdemos a capacidade de nos chocar e nos surpreender por ela

 
 
1. Em 1961 a filósofa alemã naturalizada americana Hannah Arendt acompanhou — enviada pela revista “The New Yorker” — o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Israel, acusado de genocídio e crimes contra a Humanidade durante a guerra. Dois anos depois ela lançou um livro baseado em suas observações, “Eichmann em Jerusalém”, em que surge a expressão banalidade — ou banalização — do mal. Segundo Arendt, o mal, quando atinge grupos sociais, é político e ocorre onde encontra espaço institucional. A banalidade do mal se instala no vácuo do pensamento, trivializando a violência.
“Passa o suco, por favor.”

2. Arendt concluiu que Alfred Eichmann não era um sujeito especialmente antissemita nem particularmente perverso. Era só um odioso burocrata cumprindo ordens sem questioná-las. As conclusões da filósofa causam até hoje muita polêmica. Eichmann foi enforcado em 1962 em Tel Aviv.
“E o mel.”
Descasco uma banana.

3. A banalização do mal, como o samba e outras bossas, também é coisa nossa. Comentamos com ar distraído sobre como estamos todos “anestesiados” pela violência e de como perdemos a capacidade de nos chocar e nos surpreender por ela. Das atrocidades cometidas durante a ditadura militar por grupos de repressão até as crueldades praticadas atualmente por bandidos, policiais despreparados e milícias diversas — passando pela aspereza do trânsito e pela perene brutalidade generalizada (não esqueçamos que fomos o último país do continente a abolir a escravidão!) —, convivemos rotineiramente com a violência como se ela fosse uma espécie de...
“Banana!”, grito de repente, abalando a tranquilidade doméstica do café da manhã.

4. Notícias de Cláudia Silva Ferreira, a mulher que, depois de baleada num tiroteio entre polícia e bandidos, foi arrastada por um carro da polícia numa ação que tinha a finalidade de socorrê-la: “Mataram minha mãe como um cachorro”, declarou sua filha.

5. “Que absurdo! A morte da Cláudia é um divisor de águas!”, vocifero. “A polícia tinha o dever de ajudá-la e acabou proporcionando ao mundo um espetáculo grotesco de descaso e insensibilidade! Não se pode aceitar uma coisa assim! Precisamos fazer algo a respeito!”
E começo a amassar a banana, sob olhares intrigados da família.

6. Hoje estou chocado com a morte de Cláudia Silva Ferreira. Estarei chocado amanhã? Por quanto tempo ainda me lembrarei da cena aterradora da mulher sendo arrastada pela rua? Ou da morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido por um rojão numa manifestação? E do Amarildo? Encontraram o corpo, afinal de contas? Não sei, não se fala mais no Amarildo. E das pessoas — de quem não lembro os nomes — que foram mortas pela ação irresponsável do motorista de caminhão que derrubou a passarela, quem se lembra? E do menino acorrentado ao poste? Como era mesmo o nome dele? Do sujeito justiçado à luz do dia numa rua movimentada de Belford Roxo? Da turista estuprada na van?
E esses são apenas alguns dos acontecimentos recentes.

7. Não lembro os nomes das vítimas.
Também não lembro os nomes dos vereadores e deputados em quem votei na última eleição. Algum problema de memória relacionado à meia-idade, talvez?
“Amor, a aveia.”

8. Quem ainda se lembra do João Hélio, o menino de seis anos barbaramente assassinado por bandidos que o arrastaram pela rua, preso ao cinto de segurança do carro roubado? Isso foi em 2007, e já parece um evento distante, esfumado pelo tempo. Além das histórias horripilantes que esquecemos, há os incontáveis casos de que nem ficamos sabendo. Se Cláudia Silva Ferreira não tivesse sido filmada em sua agonia, provavelmente nunca conheceríamos essa terrível imagem da banalização do mal.
“As uvas passas, por favor.”

9. Notícias de Rubens Paiva, engenheiro e político “desaparecido” pela ditadura militar em 1971: investigações revelam que além das torturas e barbaridades a que Rubens foi submetido antes de ser assassinado, um militar foi visto pulando sobre seu corpo.

10. A ditadura militar, eis outro tenebroso exemplo de banalização do mal.
E tem gente que diz que sente saudades.

Há algumas semanas Marcelo Rubens Paiva — escritor, filho de Rubens — escreveu no “Estado de S.Paulo” uma crônica brilhante em que lista dezenas de contra-argumentos que devem ser proferidos ao próximo idiota que te disser que tem saudades da ditadura.

11. Notícias de Paulo Malhães, coronel reformado do Exército, admitindo à Comissão Nacional da Verdade que torturou, matou e ocultou cadáveres durante a ditadura: “Como faço com tudo na vida, eu dei o melhor de mim naquela função”.

12. No Brasil até a banalização do mal parece xumbrega, mais tosca do que o conceito proposto por Hannah Arendt. Nosso mal é primitivo, aleatório. Aqui não é preciso nenhuma ideologia ou hierarquia para o mal se espalhar como uma praga corriqueira, uma prosaica dengue comportamental numa floresta de arbustos retorcidos. Vivemos a bananização do mal.