segunda-feira, 31 de março de 2014

"Para nunca mais se repetir", editorial de O Globo

A democracia representativa enfrenta com êxito a pesada herança da ditadura, e está provado que não há outro regime melhor

 
Não há, na história de quase 125 anos da República, fato político de maior sobrevida que o golpe de 64. Em 1980 não se discutiram os 50 anos da Revolução de 30; nem 1987, meio século da instituição do Estado Novo, inspirou a edição de livros, a organização de debates e amplas edições especiais em revistas e jornais para analisar o apagão institucional patrocinado em 37 por Getúlio Vargas e militares.

A seguir o clichê, poder-se-ia admitir que 1964 seria “um ano que ainda não acabou”. Não chega a tanto. O ciclo de 64, radicalizado pelo AI-5 em dezembro de 68, quase um golpe dentro do golpe, foi encerrado 21 anos depois com a bem-sucedida transição, sem violência, de volta à democracia, assentada em bases institucionais três anos depois, em 1988, na promulgação de uma Constituição que trouxe de volta direitos civis e liberdades. Confirmou-se, assim, a abertura de novo ciclo, hoje já de 26 anos ininterruptos de vigência do estado democrático de direito, o mais longo período da República brasileira sem recaídas autoritárias.

Trata-se de uma conquista a ser sempre defendida, porque, entre outros motivos, foi obtida num país com longeva tradição de Estado forte, de excessiva presença do poder público na vida da sociedade. Infelizmente, visões autoritárias da realidade brasileira continuam presentes na vida do país.
É provável que esta fixação em 64 seja sinal de que é necessário continuar a fortalecer a ideia da democracia representativa como valor absoluto, sem relativismos, e exorcizar de vez tentações autoritárias à direita e à esquerda.

Reflexões sobre este processo levaram as Organizações Globo, por meio do GLOBO, a reconhecer, no ano passado, que fora um erro editorial apoiar o golpe (http://memoria.oglobo.globo.com/jornalismo/opiniao/o-globo-faz-autocriacutetica-em-relaccedilatildeo-ao-apoio-ao-golpe-de-64-12018073).

Concluiu-se que, com base na perspectiva histórica dada pela passagem do tempo, está claro que, com todas as imperfeições do regime, nenhum modelo é melhor, em todos os sentidos, que o democrático, com Poderes independentes e rodízio, por eleição popular, no comando do Executivo e na aferição periódica do apoio do eleitorado aos ocupantes das Casas legislativas. Duas décadas de regime militar e um pouco mais que isso de democracia permitem comparações bastante objetivas entre a ditadura e o período em curso. Cabe lembrar que o golpe de 64, como relatam historiadores e cientistas políticos, tem suas raízes lançadas na década de 20, pelo movimento de tenentes reformistas, cansados daquela primeira fase da República, tripulada por ex-monarquistas aristocratas. Intervencionistas, os tenentes tinham pressa e queriam usar o poder do Estado (Exército) para modernizar o país, como acontecera no próprio fim da monarquia.

Foram força importante na Revolução de 30, estiveram depois em quarteladas diversas e nunca demonstraram grande apreço pelo poder civil. No golpe de 64, alguns que atuaram no tenentismo da década de 20 estavam reunidos: Ernesto Geisel, Castello Branco, Cordeiro de Farias, Juarez Távora e Juracy Magalhães, por exemplo.

Para turbinar todo aquele processo da década de 60, João Goulart, herdeiro da Presidência depois da renúncia inesperada de Jânio, optou pela radicalização do cunhado Leonel Brizola e desenhou no cenário político de 1963 um golpe de esquerda. Dessa forma estimulou sua derrubada.
O que seria uma intervenção cirúrgica, garantidas as eleições presidenciais em 65, prolongou-se por duas décadas. Tempo suficiente para os tenentes dos anos 1920 colocarem em prática, enfim, seu projeto de salvação nacional. E falharam.

Se modernizaram a infraestrutura, fecharam o país ao processo de interdependência econômica e chegaram a impedir que o Brasil se beneficiasse por inteiro da fase inicial da revolução da microeletrônica e dos computadores pessoais. Avançaram em instituições econômicas, mas sucumbiram ao erro de cevar um Estado intervencionista. Caíram na ilusão de conviver com uma inflação elevada, apenas na aparência domada pelo mecanismo pernicioso da correção monetária, e lançaram as sementes da hiperinflação da década de 80. Cujo terreno foi aplainado de vez pela quebra externa do país, em virtude da outra ilusão da ditadura, a de viver de poupança externa.

O traço de tragédia no regime militar foi dado pela violência dos agentes públicos. O fato de que parte da esquerda pegou em armas não justificava que as Forças Armadas atuassem por meio de braços semiclandestinos, e tudo com o conhecimento dos mais altos escalões, inclusive em Brasília. Itália e Alemanha, no pós-guerra, enfrentaram e venceram grupos radicais armados, sem arranhar a democracia. No Brasil, ao lado da violência física houve o uso da censura, característica deste tipo de regime, vê-se hoje na Venezuela, no Equador etc.

Recentes reportagens do GLOBO, em que se elucida o destino do deputado Rubens Paiva, desde que foi preso em sua casa no Leblon, até o martírio nos porões do DOI-Codi e o desaparecimento do corpo, jogado ao mar, denunciam o ponto a que chegaram instituições seculares e honradas, como o Exército, influenciadas por um projeto ideológico delirante de criação de um “Brasil grande” a qualquer custo. Mesmo do terrorismo de Estado.

A democracia restaurada recebeu pesada herança de graves problemas, e os equacionou. A Lei de Anistia, ampla e recíproca, base da transição pacífica, costuma ser criticada por vítimas daquele terror — é compreensível —, mas existe uma Comissão da Verdade atuante. Não se deve mesmo esquecer o que aconteceu, até em respeito às famílias atingidas pela violência oficial. A comissão e a atuação livre da imprensa iluminam os subterrâneos daqueles tempos sombrios.

Se nada está definitivamente resolvido, o obstáculo da inflação, que parecia insuperável, foi ultrapassado com grande inventividade por economistas e políticos tucanos a partir do governo de Itamar Franco. Os desníveis sociais, por sua vez, terminaram atenuados com o aprofundamento das políticas de transferência direta de renda por meio de Lula e seu PT.

Só essas duas vitórias bastariam para tirar qualquer dúvida sobre qual o melhor dos regimes — embora tanto o fim da superinflação quanto os avanços sociais não sejam conquistas definitivas. Bastam erros persistentes de política econômica para se colocar tudo a perder. Mas é indiscutível, e está comprovado, que é preferível enfrentar na liberdade as sérias dificuldades que aí estão.

Os últimos 12 destes 50 anos têm sido especialmente ricos. O principal partido da esquerda brasileira, o PT, tem a experiência de exercício do poder no Planalto e, há tempos, lideranças suas reconheceram haver diferenças entre o discurso de oposição e o de situação. O PT amadurece e em algum momento terá de demonstrar que aprende com os erros.

A ressaltar, o elevado estágio de consolidação das instituições democráticas e republicanas, de que o julgamento do mensalão é exemplo.

Há, hoje, no Judiciário zelosos protetores da Constituição, em cujas cláusulas pétreas estão garantidas as bases da democracia representativa.

Qualquer reflexão nestes 50 anos do golpe reforça o papel do estado democrático de direito nos avanços do país a partir do fim da ditadura. E aumenta a responsabilidade de todos na defesa do regime, numa fase especialmente turva em algumas regiões latino-americanas, com a perigosa benevolência por parte de inquilinos do poder em Brasília.

Foi a busca por um sistema mais “eficiente” de governo que resultou em 64 e 68. Não se pode admitir que este erro seja mais uma vez cometido.