domingo, 30 de março de 2014

"A Copa e o estado de coisas que aí está", por Luiz Werneck Vianna

O Estado de São Paulo


Quase não se sente, mas de tanto que empurrados pelos movimentos dos fatos quanto por nossas ações, desde as refletidas e conscientes dos seus fins até aquelas - provavelmente majoritárias - que os desconhecem, estamos à beira de uma grande mutação: o Estado que fez sua história entre nós como mais moderno do que sua sociedade, conduzindo seu destino à sua discrição, já dá mostras de que perde seu controle sobre os movimentos dela. Não que da sociedade tenha aflorado o impulso para a auto-organização e para a difusão de valores cívicos, bem longe disso. O fenômeno é outro e se faz indicar pela relação de estranheza e desconfiança que se vem estabelecendo entre ela e o Estado e suas instituições.

Exemplos não faltam, como o da Copa do Mundo que se avizinha. Noutras Copas, disputadas em países distantes, às vésperas das competições as ruas se faziam engalanar pelos próprios moradores, que estendiam bandeirolas e grafitavam nos muros e nas calçadas símbolos nacionais. Nesta de 2014, que se disputa aqui, ao revés, a manifestação dessas mesmas ruas tem sido a de brandir punhos cerrados sob a palavra de ordem ameaçadora de que "não vai ter Copa", que certamente não se dirige ao mundo do futebol, paixão inamovível dos brasileiros, mas ao da política.

A festa popular, que certamente virá com a abertura dos jogos, já fez sua opção de se manter distante da arena oficial, fazendo ouvidos moucos às tentativas de fazer da Copa um momento de ufanismo e de integração nacional. Ronda sobre ela o espectro dos idos de junho, porque reina, especialmente na juventude, o sentimento de que tudo isso que aí está, inclusive a Copa, "não me representa".

Estranheza quanto às instituições que não se confina a setores das classes médias, tradicionais e novíssimos, como se constatou com a greve dos garis do Rio de Janeiro, quando os trabalhadores dessa categoria profissional desautorizaram o seu sindicato e negociaram, com sucesso, suas demandas com o governo municipal diretamente. Episódios como esses têm sido frequentes sem que se abalem os fundamentos anacrônicos da estrutura sindical, imposta em outro tempo e para outro perfil de trabalhador.

O sentimento de estranheza e desconfiança, que se agrava, não se limita à incredulidade quanto a esse "outro" que é o Estado, traduzindo-se em ações, muitas delas violentas. A síndrome do protesto ganhou a imaginação de inteiros setores sociais nas metrópoles, em suas periferias e mesmo em pequenos centros urbanos, em boa parte com origem em estratos subalternos até então imersos na passividade e no conformismo.

Nesta hora, que reclama mudanças e inovações, caminha-se para uma eleição presidencial e parlamentar com todos os vícios das anteriores - aparelhadas, em meio ao jogo de parentelas e clientelas e, pior, sob a influência do dinheiro -, da qual não se espera, com justas razões, uma discussão em profundidade sobre as causas do mal-estar reinante no País.

Na raiz desse desencontro, de nenhum modo fortuito, está a guinada empreendida pelo PT, já esboçada antes de chegar ao governo em 2002, e que se radicalizou a partir do segundo mandato do presidente Lula, que o levou a revalorizar o que havia de mais recessivo na tradição republicana brasileira, qual seja o viés de se inclinar em favor de uma cultura política estatólatra. Essa cultura é longeva e teve seu momento mais forte no Estado Novo, institucionalizada pela Carta de 1937, de triste lembrança, mas subsistiu de modo encapuzado nos períodos posteriores, inclusive na democracia de 1946, para não mencionar o regime militar. E, camuflada com arte, encontrou seu lugar neste presidencialismo de coalizão que viceja à sombra da Carta de 1988.

A rigor, evitou-se responder ao desafio de encontrar um caminho original para um governo com origem na esquerda - decerto nada fácil, mas era o que cumpria fazer -, optando-se, mesmo que de modo inicialmente tímido e sem apresentar suas razões, pela restauração de práticas e ideias de um mundo defunto. Para trás, como um fardo embaraçoso de que se devia desvencilhar, a rica história de lutas contra o autoritarismo do regime militar, orientada em favor do fortalecimento da sociedade civil diante do Estado, pela descentralização administrativa, pela emancipação da vida associativa dos trabalhadores e pela defesa do princípio da pluralidade na representação sindical, estes últimos cavalos de batalha do sindicalismo do ABC e dos primórdios do PT.

O legado da resistência democrática seria preservado na Constituinte e consagrado na Carta de 1988, e encontraria seu sistema de defesa nos novos institutos criados por ela, em boa parte dependente de provocação da sociedade ao Poder Judiciário. Mas, apesar dessa relevante ressalva, a restauração de um sistema de capitalismo politicamente orientado, com a pretensão de estar a serviço de ideais de grandeza nacional, veio a minar as possibilidades de uma comunicação fluida do Estado com a sociedade civil, vã a tentativa de aproximá-los com a criação, em 2003, do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, hoje uma instituição de carimbo da vontade governamental.

O abandono da agenda que, nas décadas de 1970 e 1980, animou a resistência democrática não é inocente quanto ao atual estado de coisas que ameaça deixar o Estado a girar no vazio, incapaz de manter, em que pese sua política social inclusiva, uma interlocução positiva com os setores que emergiram dos próprios êxitos da modernização do capitalismo brasileiro. Recuperar, de verdade, as lições daquele tempo não é um exercício de memória, mas de História, disciplina interpretativa por excelência, porque é dela que nos vêm os sinais de a qual herança devemos renunciar para seguirmos em frente.