O Estado de São Paulo
Quase não se sente, mas de tanto que empurrados pelos movimentos dos fatos
quanto por nossas ações, desde as refletidas e conscientes dos seus fins até
aquelas - provavelmente majoritárias - que os desconhecem, estamos à beira de
uma grande mutação: o Estado que fez sua história entre nós como mais moderno do
que sua sociedade, conduzindo seu destino à sua discrição, já dá mostras de que
perde seu controle sobre os movimentos dela. Não que da sociedade tenha aflorado
o impulso para a auto-organização e para a difusão de valores cívicos, bem longe
disso. O fenômeno é outro e se faz indicar pela relação de estranheza e
desconfiança que se vem estabelecendo entre ela e o Estado e suas
instituições.
Exemplos não faltam, como o da Copa do Mundo que se avizinha. Noutras Copas,
disputadas em países distantes, às vésperas das competições as ruas se faziam
engalanar pelos próprios moradores, que estendiam bandeirolas e grafitavam nos
muros e nas calçadas símbolos nacionais. Nesta de 2014, que se disputa aqui, ao
revés, a manifestação dessas mesmas ruas tem sido a de brandir punhos cerrados
sob a palavra de ordem ameaçadora de que "não vai ter Copa", que certamente não
se dirige ao mundo do futebol, paixão inamovível dos brasileiros, mas ao da
política.
A festa popular, que certamente virá com a abertura dos jogos, já fez sua
opção de se manter distante da arena oficial, fazendo ouvidos moucos às
tentativas de fazer da Copa um momento de ufanismo e de integração nacional.
Ronda sobre ela o espectro dos idos de junho, porque reina, especialmente na
juventude, o sentimento de que tudo isso que aí está, inclusive a Copa, "não me
representa".
Estranheza quanto às instituições que não se confina a setores das classes
médias, tradicionais e novíssimos, como se constatou com a greve dos garis do
Rio de Janeiro, quando os trabalhadores dessa categoria profissional
desautorizaram o seu sindicato e negociaram, com sucesso, suas demandas com o
governo municipal diretamente. Episódios como esses têm sido frequentes sem que
se abalem os fundamentos anacrônicos da estrutura sindical, imposta em outro
tempo e para outro perfil de trabalhador.
O sentimento de estranheza e desconfiança, que se agrava, não se limita à
incredulidade quanto a esse "outro" que é o Estado, traduzindo-se em ações,
muitas delas violentas. A síndrome do protesto ganhou a imaginação de inteiros
setores sociais nas metrópoles, em suas periferias e mesmo em pequenos centros
urbanos, em boa parte com origem em estratos subalternos até então imersos na
passividade e no conformismo.
Nesta hora, que reclama mudanças e inovações, caminha-se para uma eleição
presidencial e parlamentar com todos os vícios das anteriores - aparelhadas, em
meio ao jogo de parentelas e clientelas e, pior, sob a influência do dinheiro -,
da qual não se espera, com justas razões, uma discussão em profundidade sobre as
causas do mal-estar reinante no País.
Na raiz desse desencontro, de nenhum modo fortuito, está a guinada
empreendida pelo PT, já esboçada antes de chegar ao governo em 2002, e que se
radicalizou a partir do segundo mandato do presidente Lula, que o levou a
revalorizar o que havia de mais recessivo na tradição republicana brasileira,
qual seja o viés de se inclinar em favor de uma cultura política estatólatra.
Essa cultura é longeva e teve seu momento mais forte no Estado Novo,
institucionalizada pela Carta de 1937, de triste lembrança, mas subsistiu de
modo encapuzado nos períodos posteriores, inclusive na democracia de 1946, para
não mencionar o regime militar. E, camuflada com arte, encontrou seu lugar neste
presidencialismo de coalizão que viceja à sombra da Carta de 1988.
A rigor, evitou-se responder ao desafio de encontrar um caminho original para
um governo com origem na esquerda - decerto nada fácil, mas era o que cumpria
fazer -, optando-se, mesmo que de modo inicialmente tímido e sem apresentar suas
razões, pela restauração de práticas e ideias de um mundo defunto. Para trás,
como um fardo embaraçoso de que se devia desvencilhar, a rica história de lutas
contra o autoritarismo do regime militar, orientada em favor do fortalecimento
da sociedade civil diante do Estado, pela descentralização administrativa, pela
emancipação da vida associativa dos trabalhadores e pela defesa do princípio da
pluralidade na representação sindical, estes últimos cavalos de batalha do
sindicalismo do ABC e dos primórdios do PT.
O legado da resistência democrática seria preservado na Constituinte e
consagrado na Carta de 1988, e encontraria seu sistema de defesa nos novos
institutos criados por ela, em boa parte dependente de provocação da sociedade
ao Poder Judiciário. Mas, apesar dessa relevante ressalva, a restauração de um
sistema de capitalismo politicamente orientado, com a pretensão de estar a
serviço de ideais de grandeza nacional, veio a minar as possibilidades de uma
comunicação fluida do Estado com a sociedade civil, vã a tentativa de
aproximá-los com a criação, em 2003, do Conselho de Desenvolvimento Econômico e
Social, hoje uma instituição de carimbo da vontade governamental.
O abandono da agenda que, nas décadas de 1970 e 1980, animou a resistência
democrática não é inocente quanto ao atual estado de coisas que ameaça deixar o
Estado a girar no vazio, incapaz de manter, em que pese sua política social
inclusiva, uma interlocução positiva com os setores que emergiram dos próprios
êxitos da modernização do capitalismo brasileiro. Recuperar, de verdade, as
lições daquele tempo não é um exercício de memória, mas de História, disciplina
interpretativa por excelência, porque é dela que nos vêm os sinais de a qual
herança devemos renunciar para seguirmos em frente.