O Estado de São Paulo
A frase é velha, mas espelha a alma nacional: o Brasil é o país do futebol.
Por isso mesmo soam estranhos gritos nas ruas de "não vai ter Copa". Essa
campanha contra o evento esportivo mais importante do mundo só entra na cachola
quando se intui que seu alvo não é o futebol, mas os governos, os escândalos de
corrupção, as coisas mal feitas e, no meio da algaravia, a anatomia
arquitetônica de estádios sobrepondo-se, no entorno, à lama de becos e ruelas,
ônibus estropiados, filas intermináveis em postos de saúde e corredores de
hospitais locupletados de macas.
Sob essa teia do presente emerge a imagem do
passado, a Copa de 70, aquela em que um general de amedrontador sobrenome,
Garrastazu Médici, e de nome Emílio, dominava a cena por inteiro. Tempos de
emoção, dor e medo. Tempos de uma polifonia controlada, diferente destes nossos
tempos internéticos, quando só se permitiam as vozes das ruas quando
acompanhadas pelo som de fanfarras que buzinavam as glórias do futebol.
Quanta emoção assistir pela TV à vitória da seleção canarinho naquele
memorável 21 de junho de 1970:4 x 1 sobre a Itália! Que orgulho ver a nossa
artilharia pesada com seus 19 gols, 1 a cada 28 minutos! Milhões de brasileiros
repartindo seus sentimentos entre a vibração e o torpor, como se ambos fossem
elos de uma mesma corrente. A máquina da ditadura, girando sobre o psiquismo das
massas, dobrava ânimos. Pelé, Tostão, Gérson, Rivellino, Jairzinho e Carlos
Alberto, esculpiam, nos campos do México, a face risonha dos brasileiros. Em
outra banda, o poderoso Garrastazu manobrava sua batuta, ora para reger o coro
da Copa, com o refrão "90 milhões em ação", ora manobrando os eixos de chumbo de
seu governo.
A orquestra cívica tocava a sinfonia do desenvolvimento com
segurança. A catarse fazia acorrer às ruas engalanadas milhões de brasileiros,
convocados para receber os campeões mundiais no seu desfile em caminhão de
bombeiros. Bandeiras, urros, fogos de artifício, bares despejando no ar vapores
de cerveja e cachaça. Passada a euforia, a alma nacional recolhia-se em contrito
silêncio, contendo o medo, a angústia, a impotência.
Nas salas palacianas recolhia-se ele, Médici, o sisudo general que aliviava a
férrea imagem com um radinho de pilha colado ao ouvido, o mesmo que tentou
escalar Dadá Maravilha para a seleção. João Saldanha, o primeiro técnico, soltou
um berro, para gáudio da galera: "Presidente escala ministério; a seleção,
escalo eu". Zagallo tomou o seu lugar. De um lado, a lâmina do facão cortando;
de outro, a catarse coletiva se espraiando. Dor e prazer forçados a conviver, a
estética dos estádios imbricando-se à tétrica anatomia das prisões. Sobre todos
pairava a sensação de estar sendo vigiado, seguido, perseguido - era assim nos
escritórios, nas ruas, nos bares, nas esquinas, nas livrarias, nas salas de
aula.
A personagem de A Metamorfose, de Kafka, cai bem. Gregor Samsa, certa manhã,
ao abrir os olhos, após sono inquieto e atormentado, viu-se transformado em
monstruosa barata. Não foram poucos os brasileiros que se identificaram com
aquele corpo deitado de costas, pernas para cima, com dificuldade para se virar
e sair andando. Um terror que a conquista do tricampeonato nas arenas mexicanas
procurava encobrir.
A névoa de 44 anos deixa ver ainda com nitidez a era Médici,
até porque, às vésperas de mais uma Copa, e desta vez no hábitat da seleção
canarinho, a melhor hipótese está, há tempos, bem definida: o Brasil vivenciará
a maior catarse coletiva de sua História. Por quê?
Eis algumas razões: o País
quer se livrar do fantasma de derrota no Maracanã em 1950; respira hoje ares
democráticos; vive o ciclo da intensa dinâmica social, de modo que os 30 milhões
que ascenderam à classe média poderiam usar seus pulmões para disseminar o ar de
felicidade, entoando refrãos cívicos mais fortes que o "salve a seleção" e o
"pra frente, Brasil", da letra do clássico escrito por Miguel Gustavo.
Mas a catarse virá caso a seleção ganhe a Copa? Pode ser. Mas o fato é que
não há mais disposição do povo para ser joguete nas mãos de políticos. A índole
dos cidadãos mudou. Não significa concluir que muitos brasileiros estão contra a
realização da Copa em nossas arenas, algumas ainda em fase de conclusão. A
manifestação de contrariedade tem um alvo claro: a irresponsabilidade dos
governantes. Não se admite que, em pleno século 21, políticas populistas sejam
usadas para alavancar e/ou prejudicar perfis, governantes, candidatos ou
quaisquer atores do palco político.
Nas últimas quatro décadas a evolução do
pensamento nacional ajudou a combater muitas mazelas. O voto de cabresto foi uma
delas. A realização da Copa do Mundo no ano das eleições abre vasto terreno para
exploração política. Acontece que o eleitor sabe identificar os oportunistas.
O
acervo negativo que, nos últimos anos, se abateu sobre a sociedade abriu uma
corrente de reações. Hoje o Brasil se apresenta como um dos mais avançados
territórios do planeta nas frentes da conquista de direitos, igualdade de
gêneros e promoção da cidadania. Sobre a base de uma democracia em consolidação,
apesar de intermitentes crises no bojo de suas instituições, o País avança.
A Copa da era Dilma, diferente da dos anos de chumbo do governo Médici, não
deverá ser usada como armadura política. Quem se arriscar a pegar nessa
ferramenta para se aproveitar poderá cair do cavalo. Dilma é uma ex-militante
que sofreu nos cárceres o peso da opressão. Sabe que não se fabrica alegria em
laboratórios artificiais. Precisa entender as manifestações de rua como
expressão de uma democracia que oxigena os pulmões sociais.
E saber tirar
lições, entre as quais a de que o produto nacional bruto da felicidade resulta
de bem-estar geral do povo. Nas vésperas da Copa, é possível sentir que o corpo
social está com febre. E carece remédio.