sábado, 29 de março de 2014

"Novos desastres na política externa", editorial de O Globo

Companheirismo ideológico leva diplomacia brasileira a se omitir diante das violações de direitos humanos na Venezuela e da agressão russa à Ucrânia

 
A diplomacia brasileira sempre se caracterizou pela cautela necessária para evitar precipitações na abordagem das questões internacionais. Mas, nos últimos anos, o lulopetismo entranhou de tal forma a política externa que até esse aspecto passou a ser usado ao sabor das conveniências, tornando-se difícil distingui-la da omissão pura e simples. ONGs venezuelanas ficaram pasmas com o chanceler brasileiro, Luiz Alberto Figueiredo, por ele minimizar as denúncias sobre violações dos direitos humanos pelo governo Maduro, chegando a dizer que tais situações “ocorrem em todos os países, até mesmo no Brasil”. Num encontro com chanceleres da Unasul, que foram a Caracas para tentar uma aproximação entre o governo e a oposição, as organizações relataram 59 casos de tortura e mais de 1.900 detenções consideradas arbitrárias. Já morreram 37 pessoas nas manifestações. Figueiredo assumiu posição de comissário cubano.

Segundo Alfredo Romero, da ONG Foro Penal, o ministro brasileiro teria dito que o que ocorre na Venezuela é “mínimo, mínimo, mínimo” diante do que aconteceu no Brasil na década de 60. Uma comparação estapafúrdia, já que uma coisa nada tem a ver com a outra, e um erro — a repressão na ditadura brasileira — não ameniza outro, as arbitrariedades cometidas pelo governo chavista de Maduro contra quem quer que se lhe oponha. A opção do governo brasileiro em relação à Venezuela obedece ao princípio do companheirismo ideológico. O Brasil integra, ao lado de Colômbia e Equador, uma comissão designada pela Unasul para mediar entre o governo e a oposição venezuelana — que já enfrenta o rechaço dos oposicionistas, os quais preferem mediadores mais neutros, compreensivelmente.

A omissão brasileira desfilou também na Assembleia Geral da ONU, em votação sobre a anexação da Crimeia ucraniana pela Rússia. Enquanto, em Brasília, o embaixador da Ucrânia, Rostyslav Tronenko, pedia ao governo brasileiro que não ficasse “em cima do muro”, o Brasil optava pela abstenção. Ficou no muro. A ONU quis marcar posição de condenação à atitude de Moscou de anexar território de outro país soberano, ao arrepio de todas as normas e convenções internacionais. A moção teve cem votos de apoio, 11 contra e 58 abstenções. A posição do Brasil é, segundo o embaixador na ONU, Antonio Patriota, “conclamar Rússia e Ucrânia a se engajarem em conversações construtivas”. Sobre a tomada de território na chamada “mão grande” por Vladimir Putin, nada.

Parece apenas omissão, mas tem explicação ideológica. Pelos cânones lulopetistas, a política externa é guiada pela concepção do eixo “Sul-Sul”, coisas da década de 70, em oposição à “hegemonia” dos países do Norte, à frente os EUA. A Rússia não fica no Sul, mas se opõe a Washington, então é bem-vinda. E o Brasil sacrifica anos de uma política externa profissional e respeitada no altar de opções ideológicas altamente discutíveis.


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