O Estado de São Paulo
Domingo de carnaval, convenhamos, não é o melhor dia para ler artigo sobre
política internacional. Mas que fazer? Coincidiu que o dia de minha coluna fosse
hoje e não tenho jeito nem vontade de escrever sobre as alegrias de Momo. Por
mais que nos anestesiemos no carnaval, o meio circundante não alenta alegrias
duráveis.
Comecemos do princípio. Acho que houve um erro estratégico desde o governo
Lula na avaliação das forças que predominariam no mundo e da posição do Brasil
na ordem internacional que se transformava. Não me refiro ao que eu gostaria que
ocorresse, mas às tendências que objetivamente se foram configurando. Nossa
diplomacia se guiou pela convicção de que um novo mundo estava nascendo e levou
o presidente, em sua natural busca de protagonismo, a ser o arauto dos novos
tempos. A convicção implícita era a de que pós-Muro de Berlim, depois de breve
período de quase hegemonia dos Estados Unidos, pregada por seus teóricos do
neoconservadorismo, e da coorte de equívocos da política externa desse país
(invasão do Iraque, do Afeganistão, isolamento da Rússia, apoio acrítico a
Israel em sua política de assentamentos de colonos, etc.) e dos desastres
provocados por essas atitudes, assistiríamos a uma correção de rumos.
De fato, houve essa correção de rumos, mas a direção esperada pela cúpula da
diplomacia brasileira e por setores políticos sob influência de alas
antiamericanas do PT era a do "declínio do Ocidente", com a perda relativa do
protagonismo americano e a emergência das forças novas: a China (o que ocorreu),
o mundo árabe, em especial os países petroleiros, a África e, naturalmente, a
América Latina como parte deste "Terceiro Mundo" renascido. Essa visão encontra
raízes em nossa cultura diplomática desde os tempos da "política externa
independente", de Jânio Quadros, e encontra eco nos sentimentos de boa parte dos
brasileiros, inclusive de quem escreve este artigo. Sempre sonhamos com um mundo
multipolar no qual "os grandes" tivessem de compartilhar poder e nós,
brasileiros, pouco a pouco nos tornássemos parceiros legítimos do grande jogo de
poder global.
Contudo uma coisa é desejar um objetivo, outra é analisar as condições de sua
possibilidade e atuar para que, dentro do possível, buscando ampliar seus
limites, nos aproximemos do que consideramos o ideal. Nisso é que o governo Lula
calculou mal. Se a Europa, sobretudo depois da crise financeira de 2008, perdeu
tempo em tomar decisões e está até hoje embrulhada na indefinição sobre até que
ponto precisará integrar-se mais (compatibilizando as políticas monetárias com
as fiscais), ou voltar, na linguagem de De Gaulle, a ser a "Europa das Pátrias",
nem a China se perdeu nos devaneios maoistas nem os Estados Unidos no
neoconservadorismo que acreditava que a América poderia agir como se fosse uma
hiperpotência. Ao contrário, a China lançou-se às reformas para inverter o polo
investimento/consumo, diminuindo aquele e aumentando este, e os americanos
deixaram de lado a ortodoxia monetarista, recalibraram a sua política externa e
se jogaram à inovação das fontes de energia. Hoje propõem uma coexistência
competitiva, mas pacífica, com a China, baseada no comércio, e lançam cordas
para que a Europa saia do marasmo e se incorpore aos Estados Unidos, que
funcionariam como dobradiça entre a China e a Europa, formando um formidável
tripé.
Enquanto isso, o Brasil faz reuniões com os árabes, que não deixam de ter sua
importância, propõe negociações sobre o Irã em coordenação com a Turquia
(imagine-se se os turcos fariam o mesmo, propondo-se a ajudar o Brasil para
resolver o litígio das papeleiras entre Uruguai e Argentina...), abre embaixadas
nas mais remotas ilhas para, com o voto de países sem peso na mesa das
negociações, chegar ao Conselho de Segurança (da ONU). Por outro lado,
comporta-se timidamente quando a Petrobrás é expropriada pela Bolívia, interfere
contra o sentimento popular em Honduras, abstém-se de entrar em bolas divididas,
como no conflito argentino-uruguaio, além de calar diante de manifestações
antidemocráticas quando elas ocorrem nos países de influência "bolivariana".
Noutros termos: escolhemos parceiros errados, embora, em si mesma, a relação
Sul-Sul seja desejável, e menosprezamos os atores que estão saindo da crise como
principais condutores da agenda global, exceção parcial feita à China (neste
caso, não há menosprezo, mas falta de estratégia). Perdemos liderança na América
Latina, hoje atravessada pela cunha bolivariana que parte da Venezuela com apoio
de Cuba, estende-se acima até a Nicarágua, passa pelo Equador e, abaixo, desce
direto à Bolívia e chega à Argentina. No outro polo se consolida o Arco do
Pacífico, englobando Chile, Peru, Colômbia e México, e nós ficamos encurralados
no Mercosul, sem acordos comerciais bilaterais e, pior, calados diante de
tendências antidemocráticas que surgem aqui e ali.
Ainda agora, na crise da Venezuela, é incrível a timidez de nosso governo em
fazer o que deve: não digo apoiar este ou aquele lado em que o país rachou, mas
pelo menos agir como pacificador, restabelecendo o diálogo entre as partes,
salvaguardando os direitos humanos e a cidadania. O Mercosul desabridamente se
põe do lado do governo de Maduro. O Brasil timidamente se encolhe, enquanto o
partido da presidente apoia o governo venezuelano, sem nenhuma ressalva às
mortes, ao aprisionamento de oposicionistas e às cortinas de fumaça que querem
fazer crer que o perigo vem de fora, e não das péssimas condições em que vive o
povo venezuelano.
Agindo assim, como esperar que, chegada a hora, a comunidade internacional
reconheça os direitos que cremos ter (e de fato poderíamos ter) de tomar assento
nas grandes decisões mundiais? Fomos incapazes de agir, ficamos paralisados em
nossa área de influência direta. A continuar assim, que contribuição daremos a
uma nova ordem global? Chegou a hora de corrigir o rumo. Que a crise venezuelana
nos desperte da letargia.