O Estado de São Paulo
Em debate pela TV nas eleições presidenciais francesas de 1974, Giscard
d'Estaing desconcertou François Mitterrand, que insistia em arrogar a si a
condição de único dos candidatos a ter sensibilidade com o "social". Em frase
que se tornou célebre, Giscard atalhou metaforicamente: "Monsieur Mitterrand,
vous n'avez pas le monopole du coeur". Diz a lenda que a tirada "senhor
Mitterrand, o senhor não tem o monopólio do coração" deu a vitória ao candidato
liberal gaullista.
O Brasil não é a França, os tempos são outros, as coordenadas políticas do
mundo já não são as mesmas, mas, mutatis mutandis, será na disputa pelo "social"
que se decidirão as eleições de outubro. Disputa não apenas em torno de agendas
e programas, mas também sobre o entendimento do que seja o "social" e sua
relação com o "econômico" e o "político".
Nesse embate, o desafio do PSDB é duplo: desconstruir a mitologia de que o
compromisso com o "social" é monopólio do PT e construir uma nova visão sobre o
que é necessário para o Brasil se desenvolver a partir da posição alcançada nos
últimos 20 anos, marcados por melhoria significativa na maioria dos indicadores
sociais.
O segundo desafio é politicamente mais importante do que o primeiro porque o
eleitor, no geral, é pragmático e voltado para o futuro previsível. Mas é
preciso mostrar que o crescimento da renda do trabalho, a redução da pobreza e a
diminuição da desigualdade são processos que se iniciaram antes, tendo como
marco fundamental a estabilidade da moeda, e se acentuaram depois, em virtude de
uma combinação de decisões políticas e circunstâncias econômicas e
demográficas.
Não se trata de pôr em questão o mérito intrínseco das decisões tomadas no
governo Lula, mas de persuadir o eleitorado de que as iniciativas e
circunstâncias que permitiram o aumento significativo da renda e do emprego e a
redução maior da pobreza e da desigualdade nos últimos dez anos já esgotaram
grande parte dos seus efeitos positivos. Não é tarefa fácil, mas não é
impossível.
O aumento da renda pela geração de postos de trabalho vem perdendo força. De
um lado, porque o País está em virtual situação de pleno emprego. De outro,
porque se vem reduzindo - e cada vez mais - a proporção de jovens na população
brasileira, fruto do seu envelhecimento. Ao mesmo tempo, o salário real deixou
de ser beneficiado pela valorização da taxa de câmbio. Esta foi enorme nos
últimos dez anos e só não resultou em problemas mais sérios nas contas externas
por circunstâncias internacionais excepcionalmente favoráveis na maior parte do
período. Essas circunstâncias desapareceram e a tendência do câmbio agora é a
inversa.
No novo contexto, a regra de reajuste do salário mínimo terá de ser
repensada, como já admitem economistas mais lúcidos simpáticos ao governo. A
menos que se queira dar gás adicional à inflação e/ou à deterioração das contas
públicas. A política de ganhos reais sistemáticos do salário mínimo, bem acima
da inflação, que começou no governo FHC e se intensificou desde então, chega
agora a seu limite. Daqui em diante os ganhos deverão desacelerar. O mesmo se
aplica aos programas de transferência de renda, que não crescerão na mesma
velocidade que cresceram desde que foram criados, ainda no governo FHC, já que
não há mais tantos pobres para incorporar a esses programas como havia no
passado.
Necessita assim o País de uma nova agenda de políticas (e de quem possa
implementá-la, eis o ponto). Ela não implica ruptura com a anterior, como
tentará "demonstrar" a campanha de Dilma, mas requer outro arranjo dos seus
elementos e outra calibragem no peso relativo de cada um. Seu foco deve estar
voltado para aumentar a qualificação do trabalhador brasileiro, homens e
mulheres, sua educação, sua capacitação para o trabalho, sua saúde, sua condição
de moradia e mobilidade. Trata-se de uma agenda que exige mais e melhores
investimentos em infraestrutura física (saneamento e transporte de massa, desde
logo) e capital humano (com a retomada da prioridade ao ensino básico, agora com
ênfase no nível médio, de 15 a 17 anos), maior eficiência na gestão e firmeza no
combate à corrupção e ao desperdício. É uma agenda a ser defendida
essencialmente pelo que representa para o avanço da qualidade de vida e da
cidadania no Brasil, em benefício de todos, mas em especial dos ainda pobres e
da "nova classe média".
Não há duvida que se deve limitar o aumento das despesas correntes do
governo, que vêm crescendo acima do PIB desde o governo FHC e, ainda mais, nos
dois últimos governos. É uma tendência insustentável, ruim para o crescimento e
para o controle da inflação. Dizer isso, porém, não é dizer tudo. Sem querer
ensinar o Padre-Nosso ao vigário, é preciso enfatizar que a inflação é um
imposto impingido principalmente sobre os mais pobres e afirmar que o controle
das contas púbicas deve ser feito com atenção aos seus efeitos distributivos. A
transferência subsidiada de recursos do Tesouro para o BNDES é apenas um exemplo
das muitas políticas socialmente regressivas e fiscalmente temerárias adotadas
pelos governos Lula e Dilma. Também regressiva do ponto de vista social é a
estrutura de proteção excessiva à economia brasileira, parte da explicação para
os preços surreais que pagamos no Brasil, como vem explicando com tino Edmar
Bacha.
Antes e acima de tudo, o desafio começa por não temer o enfrentamento com o
PT no campo em que esse partido se arvora em monopolista da virtude. Para tanto,
consistência técnica nas propostas é indispensável. Mas não basta. Como dizia o
próprio Mitterrand, no embate com Giscard mencionado na abertura deste artigo,
"c'est pas seulement une question de intelligence, c'est une question du coeur"
(em tradução livre, "não é apenas uma questão de inteligência, é uma questão de
sensibilidade"). E de inteligência política, sugeriria eu.