quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Há 'covardia' de juízes ao decidir por prisão, diz ex-magistrado de Minas

Frederico Vasconcelos - O Estado de São Paulo

Livingsthon Machado foi aposentado compulsoriamente após ordenar, em 2005, a soltura de 59 presos ilegais na comarca de Contagem (MG).



Carceragem de Contagem e Livingsthon José Machado
Em 2005, o juiz Livingsthon José Machado determinou a soltura de 59 presos que cumpriam pena ilegalmente em delegacias superlotadas na comarca de Contagem (MG). Ele foi aposentado compulsoriamente pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Doze anos depois, ele diz que, “por desespero e medo”, os juízes estão liberando presos sem planejamento, diante dos massacres nos presídios do Amazonas e de Roraima.
É o que revela reportagem da Folha nesta quarta-feira (18), com trechos de entrevista concedida ao editor deste Blog.
Criticado na época pelo governador Aécio Neves (PSDB), acusado de “fazer proselitismo pessoal” e colocar em risco a segurança pública, Machado recebeu apoio de juízes de varas de execução criminal e de entidades de direitos humanos.
Em 2010, o TJ-MG participou de mutirão do Conselho Nacional de Justiça que libertou 3.000 presos no Estado. “Não há nenhuma diferença quanto aos fundamentos jurídicos nos dois episódios: ilegalidade das prisões ou abuso no uso dessas medidas”, ele afirmou, na ocasião.
Machado atualmente exerce a advocacia e é professor em cursos de Execução Penal na PUC-MG e na OAB-MG.
A seguir, a íntegra da entrevista concedida por e-mail.
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Folha – O episódio de Contagem já sinalizava que a situação dos presídios caminhava para os massacres das últimas semanas?
Livingsthon José Machado – Não foi diferente do que está acontecendo agora em proporções mais desastrosas. A omissão do Estado já vem de longa data. O poder público varre o lixo para debaixo do tapete. Quando as crises acontecem, a solução tem sido construir novos presídios a preços superfaturados. Logo estarão superlotados.
A ideia de que prender bandidos é a solução reproduz parte do sentimento coletivo causado pelo herói nacional da atualidade, o juiz Sergio Moro. Centenas de magistrados têm a ideia de que a prisão vai resolver o problema da corrupção.
O sr. tem conhecimento de algum caso semelhante de liberação de presos antes de sua decisão, em 2005?
Não tenho conhecimento, no Brasil, de decisões com o mesmo fundamento jurídico que adotei, quando determinei a expedição de alvarás de soltura porque presos estavam cumprindo penas de forma ilegal.
Depois daquelas decisões, outros juízes adotaram o mesmo fundamento, inclusive em tribunais superiores. Contudo, o cenário político já era diferente e não causaram tanta repercussão.
Tenho conhecimento de decisões semelhantes à que tomei ocorridas na Espanha, França e Canadá. Mas não sei de nenhuma decisão anterior à minha no Brasil.
Como avalia as decisões recentes de alguns juízes de liberar presos para evitar novas mortes?
Essas decisões têm sido de desespero e medo, sem nenhum planejamento. Deveria fazer parte do cotidiano de todo juiz criminal determinar a imediata expedição de alvará de soltura quando a prisão for ilegal ou abusiva.
O ex-presidente do TJ-SP, desembargador Ivan Sartori, diz que o Estado é tolerante com a criminalidade por pressões, entre outras, de entidades de direitos humanos.
O Estado não é tolerante. As entidades de direitos humanos não gozam de grande simpatia da população. Têm espaço em discussões acadêmicas, mas não no Judiciário. São outras organizações –políticas e econômicas– que exercem pressões sobre magistrados no sentido de medidas mais duras.
A Associação Juízes para a Democracia diz que o massacre de Manaus resulta do “punitivismo” e do tratamento da questão social como caso de polícia.
A ideia também não é de todo verdadeira. Quando questões sociais são tratadas como caso de polícia é demonstração de incompetência dos gestores da coisa pública. Há, na verdade, uma covardia dos juízes em decidir por outras pressões, como interesses corporativos, de partidos políticos ou do Executivo.
Veja o caso que vivenciei em 2005. Penso que a significativa maioria dos magistrados cederia às pressões.
A interrupção dos mutirões carcerários agravou a situação das penitenciárias?
Mutirões carcerários são medidas paliativas. Não contribuem para a questão carcerária. Nas varas comuns, o processo tem começo e fim. Os mutirões podem até ajudar. Mas nas varas de execução criminal o processo é contínuo e só termina com o cumprimento definitivo da pena. Mutirões carcerários nessas varas são coisa “pra inglês ver”.
As audiências de custódia reduziriam as prisões ilegais?
A ideia é boa, mas a prática tem sido desastrosa. Em boa parte das audiências são os promotores que decidem. A maioria significativa dos juízes não examina os elementos necessários para a decretação da prisão preventiva, que é excepcional. Os delegados de polícia cumprem um papel meramente administrativo. Aumentaram as prisões ilegais porque os tribunais não têm examinado as ilegalidades praticadas por vários juízes.
Magistrados paulistas [em nota pública da Apamagis] afirmam que os juízes estaduais não são responsáveis pela administração dos presídios, tarefa que caberia ao Executivo.
Pois é … Magistrados sempre fugindo da responsabilidade. A Constituição determina que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”. A Lei de Execuções Penais diz que compete ao juiz da execução “zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança” e “inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos penais”. Então, os juízes estaduais não têm responsabilidade pela execução da pena?
Por que o Estado não consegue eliminar o tráfico de celulares nos presídios, o que permite às organizações criminosas dirigir operações fora das prisões?
Porque simplesmente não tem conhecimento dos problemas prisionais e viola, cotidianamente, as regras que ele mesmo estabelece, inclusive com o trato a seus servidores.
Os presos possuem outros meios de comunicação com o meio externo. Ou seja, a questão das organizações criminosas não se combate apenas com o impedimento de comunicação entre os líderes e o mundo exterior, isto seria apenas um analgésico para a dor de cabeça, mas não o combate da causa da dor de cabeça, que muitas vezes pode levar à morte.
Em que medida a política penitenciária se confunde com a política de segurança pública?
As duas políticas estão ligadas desde o embrião. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária tem como papel principal o planejamento destas políticas de forma integrada. Não é que se confundam, mas uma depende da outra, embora gozem de autonomia, com regras próprias, mas não isoladas e independentes.
Não é possível pensar, por exemplo, em medidas punitivas mais rigorosas como aquelas planejadas por um movimento conhecido como da “Lei e da Ordem”, que prevê mais rigor no combate ao crime pela punição, sem se pensar nos efeitos destas punições na execução.
Também não é possível se pensar só no abrandamento de medidas punitivas em razão do fracasso do modelo prisional existente, como advogam os defensores do “Direito Penal Mínimo”.
É preciso pensar as duas políticas não uma em oposição a outra ou de ponderação entre elas, mas de integração, com um único objetivo comum. Promover o bem-estar, a liberdade e a segurança como complementares um do outro.
Por que não há uma força-tarefa para prevenir e reprimir facções como o PCC, o CV e a FDN?
Falta de vontade política. Operações da Polícia Federal, com nome pomposos, ganham espaço na mídia e a simpatia de parte da população. Muitas operações são atabalhoadas, como na Lava Jato. Só que isso gera dividendos políticos. Quando a questão é o problema prisional, boa parte da população tem aversão ao tema. Muitos defendem o assassinato de presos e são aplaudidos, como o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que se apresenta como pré-candidato à Presidência em 2018.
O poder público não tem se ocupado de impedir as ações dessas organizações criminosas e de seus líderes porque, de certa forma, são eles que mantêm certa “ordem” nos presídios. É a “ordem pela desordem”.
Como vê a terceirização e privatização de presídios?
Eu vejo como uma solução possível e viável para ser utilizada na execução de penas privativas de liberdade, mas que devem ser pensadas de forma transparente e sem demagogia ou fantasias acadêmicas.
Para não parecer que estou sendo só pessimista, uma experiência que a sociedade civil vem tentando implementar para amenizar este problema é o método de execução penal conhecido como APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados). Foi idealizado pelo advogado Mário Ottoboni [são snidades de não mais de 300 presos, com elevado índice de ressocialização]. O sistema foi implementado em várias comarcas no Brasil e até no exterior. Uma das dificuldades que este método tem enfrentado é exatamente a atuação desastrosa do poder público.
O trabalho, ou aquilo que na APAC é conhecido como “laborterapia”, deve ser pensado de forma harmônica com os interesses econômicos do empreendedor (do empresário) de forma a termos ganhos tanto para a atividade econômica, como para o sentenciado (ganhos econômicos e profissionais) e para a sociedade –redução da reincidência e colaboração de força de trabalho produtiva.
Na Vara de Execuções Criminais de Contagem, elaboramos juntamente com a Defensoria Pública, lojistas, assistentes sociais e poder público municipal um projeto neste sentido, com excelente receptividade pelo empresariado. Mas é preciso seriedade e transparência.
Na sua opinião, quais serão os desdobramentos dos episódios ocorridos no início deste ano?
Eu prefiro não fazer prognósticos, pois não tenho boas expectativas sobre o que está por vir. O que tenho visto do ministro da Justiça e do Supremo Tribunal Federal não me anima muito, não… Tomara que esteja errado.