domingo, 29 de janeiro de 2017

Gustavo Franco: "Trump na terra de Oz"

O Globo

Nada mais incerto do que o que vai se passar com Donald Trump na presidência dos EUA, mas não se fala de outra coisa. O assunto desperta paixões, e por bons motivos.
Primeiramente, vale lembrar que a cena política americana é dominada por dois partidos cujas semelhanças predominam sobre suas divergências. É preciso recuar mais de um século para encontrar a presença relevante de um terceiro partido — justamente o Partido Populista, cujo apogeu se deu em 1896, quando esteve perto de vencer a eleição presidencial.

O candidato populista de então, William Jennings Bryan, do alto de seus 36 anos, ganhou a convenção dos Democratas com um discurso arrebatador atacando Wall Street e também o padrão ouro (o equivalente da época à globalização), com isso vencendo o presidente da República, Grover Cleveland, que buscava concorrer à reeleição. Em seguida, Bryan perdeu por pouco para o republicano William McKinley: a estranha coalizão democrata-populista, centrada nos pequenos fazendeiros do Kansas, mas que também incluía papelistas, sindicalistas, proibicionistas, sufragistas e progressistas de toda ordem, venceu em 22 estados, enquanto McKinley ganhou 23 (271 a 176 no colégio eleitoral). No voto popular, McKinley fez 7,1 milhões contra 6,5 milhões de Bryan.

O embate se repete, ainda que mais morno, na eleição de 1900, quando McKinley vence com mais facilidade. As duas eleições foram objeto de sátira em O Mágico de Oz, onde Bryan, conhecido como o “Leão de Nebraska” face à sua oratória truculenta e inflamada, e atacado pelos republicanos pelas posições não intervencionistas em política externa, foi retratado pelo Leão Covarde. O Lenhador de Lata era o eleitorado urbano, o Espantalho, os fazendeiros e Dorothy, a América, inocente e encantadora, querendo voltar apenas para o Kansas. Eles marcharam juntos nas duas eleições, usando os sapatos de prata na estrada de tijolos de ouro, mas o sistema, ou seja, o Mágico os enredou de várias formas: foi a derrota das pessoas comuns.

Entretanto, McKinley foi assassinado por um anarquista em 1901 e substituído por Theodore Roosevelt, de 42 anos, um dos mais dinâmicos e admirados presidentes americanos, e uma espécie de retrato do que ficou conhecido como a era progressista. Foi como se o populismo tivesse sido deglutido pelos grandes partidos.

Jamais o populismo voltou a se apresentar nesses termos na política americana, embora sua sombra pareça sempre presente em eleições descritas como de realinhamento. Foi assim no caso das eleições de 1932, vencidas por Franklin Delano Roosevelt, quando se forma o “New Deal”. No início, todavia, Roosevelt era quase um ortodoxo, mas uma ameaça populista em seu partido, de nome Huey Long, governador de Louisiana, e possível concorrente, foi o fator que o levou a uma guinada distributivista e a uma vitória consagradora em 1936.

Outra eleição de realinhamento é a de Ronald Reagan em 1980, refletindo a fadiga ou o esgotamento do keynesianismo herdeiro do New Deal. Novas ideias pró-mercado confrontaram o establishment industrial e sindical que crescera durante os anos do New Deal, sobretudo via competição estrangeira (moeda valorizada) e a imigração. A postura hostil com relação à União Soviética, que se dissolve no final da década, consagra Reagan, mas republicanos nacionalistas, como Ross Perot e Pat Buchanan, foram vozes dissidentes pela direita e boas prévias do fenômeno Trump.

A crise de 2008 pode ser vista como resultante de excessos desse neoliberalismo, e deveria conduzir a outro realinhamento, mas não foi bem isso o que se passou com Barack Obama, que não confrontou Wall Street, nem trouxe alento para a classe média americana vitimada pela globalização. Ventos populistas se observam pela esquerda, com Bernie Sanders, e pela direita, com Donald Trump, ambos reencarnando Bryan, e o resultado é um presidente eleito por conta de uma retórica estridente, em aberto desafio ao politicamente correto, propenso a um menor envolvimento em encrencas internacionais, protecionista e contrário aos grandes tratados comerciais, à imigração e ao offshoring pelas multinacionais americanas.

O leão, o lenhador e o espantalho desta vez conquistaram Oz. Bryan está no poder, para o horror do establishment. Como o Mágico vai absorver as novas demandas, esta é a grande questão.