As regras da LDO são claras. Está na hora de seguir à risca o preceito constitucional
A primeira etapa de um percurso que visa à reconstrução do Estado é a que trata da reforma do processo orçamentário. Ao longo das ultimas décadas, a importância do orçamento público para o fortalecimento do Estado e a vitalidade da democracia foi solenemente ignorada. O orçamento deixou de ser o principal instrumento para garantir o equilíbrio dos Poderes para se transformar numa das próprias causas para a multiplicação dos conflitos.
A destruição do processo orçamentário acarretou a irrelevância do orçamento enquanto instrumento fundamental para organizar as ações do Estado e criar as condições necessárias para a eficiência e a eficácia das políticas públicas, com a consequente ineficiência da gestão e o desinteresse dos profissionais mais qualificados em exercer as funções burocráticas. Na ausência de estratégias assentadas num planejamento competente, o horizonte do orçamento foi ofuscado e o Estado abandonou uma ação proativa para se acomodar numa atitude reativa.
Na primeira etapa desse percurso, o passo inicial consiste na restauração da credibilidade do orçamento mediante a recuperação do espírito que guiou a instituição da Lei de Diretrizes Orçamentárias (a LDO) pela Constituinte de 1988. Conforme estipula o texto da Constituição, cabe à LDO estabelecer as metas fiscais, definir as diretrizes orçamentárias, o programa de investimentos e a política de financiamento das agências financeiras oficiais, o que nunca chegou a ser feito como deveria. Desde o primeiro momento esse espírito foi desvirtuado, transformando a LDO numa lei que trata de inúmeros detalhes sem tratar de fato do essencial.
Não é preciso dispor de poderes sobrenaturais para evocar o espírito que presidiu à instituição dessa lei. Basta seguir à risca o que diz a Constituição. E isso começa com o rigor na previsão das receitas orçamentárias, abandonando a prática antiga de superestimar recursos para abrigar maiores demandas de gasto e o vício adquirido há algum tempo de contar com receitas extraordinárias para cumprir as metas fiscais. Um passo nessa direção foi dado pelo atual governo com a disposição de exibir números mais realistas para o déficit primário, mas o resultado anunciado ainda depende de receitas extraordinárias e não explicita um grave problema, que é a insuficiência das receitas correntes para cobrir despesas obrigatórias.
A credibilidade do orçamento não depende apenas de previsões confiáveis para as receitas. É preciso deixar claro o crescente avanço das despesas obrigatórias sobre as receitas correntes e a impossibilidade de sustentar o equilíbrio fiscal no médio prazo sem pôr em discussão o desequilíbrio nas prioridades orçamentárias, que cresceram à sombra do foco na meta anual para o resultado primário. Isso é essencial para restaurar a credibilidade das projeções inseridas no anexo de riscos fiscais da LDO, de modo a dar início a um processo de planejamento orçamentário de médio prazo que não focalize apenas o equilíbrio macroeconômico, mas também as diretrizes a serem seguidas com vista à redução dos desequilíbrios nas prioridades orçamentárias.
Um planejamento orçamentário de médio prazo também é essencial para articular as medidas necessárias para sustentar a estabilidade macroeconômica com aquelas que devem cuidar da promoção do desenvolvimento. Daí o mandato constitucional que determina destacar na LDO as iniciativas voltadas para alavancar o crescimento mediante a formulação de um programa de investimentos e a concomitante definição da política de financiamento das agências financeiras oficiais. As regras da LDO são claras. Ao Estado cabe cuidar da ordem, para manter a estabilidade, e do progresso, para garantir a felicidade da Nação. Está na hora de seguir à risca o preceito constitucional.
Para dar conta dessa dupla responsabilidade é necessário tratar da recuperação do investimento público e do saneamento financeiro das agências de financiamento. Daí a importância de as diretrizes orçamentárias definirem metas para a redução dos desequilíbrios nas prioridades, de modo a abrir espaço fiscal para ampliar os investimentos governamentais e restaurar a capacidade das agências de fomento de apoiarem os investimentos privados, buscando atacar o principal motivo da perda de confiança da sociedade no Estado, que viceja na falta de perspectiva para uma queda rápida e significativa dos índices de desemprego.
Não convém insistir apenas na renovada aposta de que a falência do investimento público poderá ser substituída por privatizações e concessões. Isso é importante, mas não é uma panaceia. Uma política de investimentos orientada por uma visão estratégica de futuro precisa sair do trivial e fazer escolhas capazes de alavancar uma nova rodada de desenvolvimento industrial, que combine medidas relevantes para fortalecer o Estado com a incorporação de avanços tecnológicos para criar empregos de maior qualidade e gerar efeitos multiplicadores em toda a economia.
Também importante para a retomada da confiança da população no Estado é a recuperação da sua capacidade de executar o que foi prometido. O povo está cansado de promessas nunca cumpridas e para mudar isso é preciso que o tema esteja presente nos primeiros esforços de retomada do planejamento. Para evitar que isso se repita é essencial que o compromisso com o realismo das propostas seja complementado por medidas que visem a reforçar a capacidade de operação da máquina pública em áreas estratégicas para o País, de modo a instilar confiança na população com respeito a capacidade do Estado de liderar uma saída mais rápida da crise e dar início a uma nova etapa de desenvolvimento.
* FERNANDO REZENDE É ECONOMISTA, PROFESSOR DA ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE EMPRESAS DA FGV, FOI PRESIDENTE DO INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA