Ao desprezar evidências, Trump passa a ser temido pelos americanos
Apesar de tudo o que está acontecendo no Brasil, o que vem dos Estados Unidos preocupa. Na primeira coluna que escrevi, lamentava que nos dias atuais as versões valem mais do que as evidências. Ao lançar a ideia de uma realidade alternativa, que despreza as evidências, Trump passa a ser temido pelos próprios americanos. E se preferirem as evidências em vez de Trump? Seriam obrigados a se render à versão oficial dos fatos?
Não sei se pelo cansaço da viagem — percorri dois mil quilômetros para visitar a área de emergência da febre amarela —, tenho uma sensação de que estamos sofrendo um ataque do passado. Muito do que se supunha perdido no século passado volta hoje com força. É difícil seguir todos os movimentos de Trump porque, além da volta do passado, o presente nos ataca com surpresas assustadoras, como, por exemplo, a morte de Teori Zavascki, relator da Lava-Jato.
No meio de toda essa confusão, ainda tentei pensar na morte de uma pessoa. Como o fiz depois do desastre com o avião de Eduardo Campos. Sabia que iria haver uma grande discussão: acidente ou atentado? Mas intuía também que isso só se sabe ao cabo de uma longa investigação. Pra que opinar?
Sabia também que haveria uma grande discussão sobre o destino da Lava-Jato, e que dela iria participar. Mas no momento em que soube da morte de Teori estava consultando o telefone no carro. Passávamos por uma rua de Teófilo Otoni, e a vida fervilhava lá fora.
Estranho, pensei: tenho um morto na palma da mão, e o mundo continua a girar no seu ritmo louco. É assim com cada morte. Lembrei-me de uma carta da escritora Rachel Carson, autora do clássico “Primavera silenciosa”. O contexto era uma correspondência de amigas íntimas. Rachel, que já estava doente, talvez antevendo a morte, descreve a manhã em que viu centenas de borboletas coloridas passando na sua frente. E pensou: que bom seria vê-las de novo, mas lembrou, rapidamente, que isso seria impossível, pois o ciclo de vida delas é muito curto. A brevidade e a beleza do ciclo da borboleta são também estímulo para pensar a vida humana.
As coisas não estão nada bem. Macacos e gente morrendo de febre amarela, desemprego, presídios em chamas, decapitações, e agora insegurança num front decisivo: a Lava-Jato. Ninguém escolheria este cenário. Mas é o tempo que nos é dado para viver. Uma noite depois da morte de Teori, contemplei da minha mesa um jantar desses de 20 pessoas, várias gerações, e pensei: pelo menos sabemos algo que talvez as borboletas não saibam: tudo continua depois da nossa morte.
Uma semana depois, visitei o aeroporto de Paraty, Angra e Ubatuba. Não para responder à pergunta que a investigação responderá: intencional ou por acaso? Apenas para constatar a força do acaso numa região que chove muito, com aeroportos modestos e a imensa Serra do Mar.
Como não posso responder à pergunta, limito-me a voltar o foco para a Lava-Jato. Ela precisa prosseguir porque é importante não só para o Brasil como para pelo menos nove países no continente. Prosseguir significa, no momento, homologar as delações dos 77 funcionários da Odebrecht. E logo em seguida pensar num relator. Li que se pensava num sorteio entre os ministros. Acho a única saída que pode ameaçar a Lava-Jato. Depois de vitoriosa, o destino da operação ficaria sujeito a um processo tão aleatório como uma disputa por pênaltis.
Foi curioso, nas duas últimas semanas, cruzar cidades quentes, Santo Antônio de Pádua, 44 graus, Paraty, 45 graus, e ouvir pelo rádio que Trump mandou apagar os dados do aquecimento global no site da Casa Branca. O calor desses não é nada na escala do tempo. Mas o aquecimento global já foi demonstrado por centenas de cientistas, centenas de jornalistas documentaram seus efeitos no planeta.
É uma realidade paralela brava. Dessas que ignoram que os outros vão continuar e encaram sua própria morte como o fim do mundo. Mas ao mesmo tempo é uma realidade devastadora, pois afasta os EUA do esforço planetário para reduzir as emissões dos gases que produzem o aquecimento. Entre secas e eventos extremos, não há outro caminho senão documentar a realidade real: por mais imperfeita, tem a grande vantagem de existir.