Confrontados com o descalabro exposto nos depoimentos dos 77 delatores da Odebrecht, os ministros do Supremo Tribunal Federal deveriam esquecer a Constituição e o Código Penal por um instante, para se concentrar num conto de Ernest Hemingway. Chama-se ‘As Neves do Kilimanjaro’. Começa com um esclarecimento:
“Kilimanjaro é uma montanha coberta de neve, a 6 mil metros de altitude, e diz-se que é a montanha mais alta da África”, anotou Hemingway. “O seu pico ocidental chama-se ‘Ngàge Ngài’, a Casa de Deus. Junto a este pico encontra-se a carcaça de um leopardo. Ninguém ainda conseguiu explicar o que procurava o leopardo naquela altitude.”
O leopardo do conto serve de metáfora para muita coisa. Tanto pode simbolizar a busca romântica pelo inalcansável como pode representar o espírito de aventura levado às fronteiras do paroxismo.
O Supremo, como se sabe, é o cume da Justiça brasileira. Seus ministros acham que estão sentados à mão direita de Deus. Num instante em que a deduragem dos corruptores confessos da Odebrecht empurra mais de uma centena de encrencados na Lava Jato para dentro dos escaninhos da Suprema Corte, cabe aos ministros interrogar os seus botões: o que fazem tantos gatunos da política no ponto mais alto do Poder Judiciário?
Num país marcado pela corrupção desenfreada, os gatunos da Lava Jato beneficados com o chamado foro privilegiado simbolizam o sentimento de impunidade cultivado pela oligarquia política. Que pode virar instituto suicida se o Supremo for capaz de dar uma resposta à altura do desafio.
Um bom começo seria a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo, homologar até terça-feira (31) todos os acordos de delação. Isso liberaria a força-tarefa da Lava Jato para abrir os inquéritos que transformarão indícios em provas.
De resto, será necessário que o ministro sorteado para substituir Teori Zavascki na relatoria da Lava Jato se convença da importância do seu papel. Seja o seco Celso de Mello, o melífluo Ricardo Lewandowski ou qualquer outro, o novo relator precisa entender que a conjuntura cobra do STF um rigor compatível com a desfaçatez.
No futuro, quando os arqueólogos forem escavar esse pedaço da história nacional, encontrarão sob os escombros de um Brasil remoto carcaças que serão tão inexplicáveis quanto a do leopardo de Hemingway. Resta saber se serão as carcaças de gatunos suicidas ou de magistrados que não se deram ao respeito. A Lava Jato pode consagrar ou arruinar o Supremo.