Mesmo após conflitos, biografia é condescendente com criador de canal
NELSON DE SÁ - Folha de São PauloQuase um ano antes do lançamento, "The Loudest Voice in the Room", a voz mais alta na sala, biografia não autorizada do criador da Fox News, Roger Ailes, já dividia a política e o jornalismo americanos.
Ailes, que se recusou a falar com Gabriel Sherman para o livro, ajudou na produção às pressas de uma biografia autorizada e concorrente, "Off Camera" (Sentinel HC), no ano passado.
É como ele atua: aposta no conflito, gosta dele. Foi assim ao longo de sua trajetória político-jornalística, de marqueteiro de Nixon em 1968 a idealizador e força motriz da Fox News em 1996.
Mas o livro não autorizado, curiosamente, não é assim. Evita confronto, chegando a ser condescendente com o "brilhante" Ailes, como descreve no subtítulo.
Retrata um personagem ameaçador e autoritário no trato pessoal, inclusive nos poucos contatos com o autor, mas capaz de quase sozinho transformar o pequeno canal de notícias conservador em líder de audiência.
Sua Fox News acabou por ultrapassar o faturamento publicitário somado dos telejornais nacionais das três grandes redes e dos canais noticiosos concorrentes --e tornou-se modelo de jornalismo mundo afora.
Por outro lado, Sherman indica na biografia que Ailes, 73, é um tigre de papel. Ou melhor, que a Fox News é a pior notícia para as bandeiras que ele supostamente defende.
A radicalização dos republicanos, estimulada por ele através do canal, acabou por tornar a legenda inviável em eleições majoritárias, numa democracia americana de busca do centro.
Credita a reeleição de Obama, em parte, ao palco fornecido aos extremistas republicanos e ao esforço de Ailes para se tornar o grande eleitor americano, um fabricante-de-presidentes.
"The Loudest Voice in the Room", nessas duas faces de seu protagonista, ao mesmo tempo motor e fraqueza dos republicanos, acaba por confundir tanto os conservadores como os liberais, o que é uma qualidade.
O que não quer dizer que seja relato de primeira linha ou "a biografia definitiva", no dizer do colega de Sherman na "New York Magazine", o colunista Frank Rich.
A biografia anterior, autorizada, contou com acesso irrestrito a Ailes. Não resultou em revelações maiores, mas ao menos o protagonista fala, tem voz.
Na nova biografia, só fala por terceiros. E muitos deles, funcionários da Fox News, colegas executivos, eventuais patrões, preferem não declinar seus nomes.
Uma fonte que não assume responsabilidade pelo que relata, na visão hoje predominante no jornalismo americano, contamina o próprio relato. Sem transparência, seus eventuais interesses se distribuem por tudo.
Nas mais de cem páginas de fontes do livro, muitas são listadas assim, anônimas. Sem ouvir o protagonista e sem identificar os figurantes, cenas inteiras da biografia se tornam duvidosas.
Em outras palavras, a pressão de Ailes, evitando falar com Sherman e deixando claro que não queria ninguém falando, atingiu o objetivo de enfraquecer o livro.
De todo modo, não é uma biografia de revelações "bombásticas" como seu objeto. O que faz melhor é reconstruir conflitos, como aquele que levou Rupert Murdoch, dono da Fox News, a afastar o próprio primogênito, Lachlan, em favor de Ailes.
Ou o capítulo dedicado às suas produções teatrais de temática liberal na década de 1970, tanto na Broadway como off-Broadway. A atriz Mari Gorman se lembra de Roger Ailes com carinho e diz que, por muito tempo, não acreditou ser "a mesma pessoa" que criou a Fox News.