O Estado de São Paulo
Quando o governo Dilma endossou uma nota detestável que o Mercosul emitiu
sobre a crise política na Venezuela, que exerce sua presidência rotativa, o
atraso político chegava, finalmente, à altura do obstáculo que o bloco econômico
tem representado para o Brasil. Explicarei o que quero dizer.
Ao lado das diferenças, durante seus mandatos presidenciais, o coronel Hugo
Chávez e Lula tiveram ao menos três coisas em comum. Em primeiro lugar,
desfrutaram a mais espetacular fase de bonança externa de que se tem memória,
traduzida em juros internacionais no chão e preços de exportações primárias nas
nuvens - petróleo, de um lado, produtos agrominerais, do outro. Em segundo
lugar, enfraqueceram suas economias, desindustrializando-as e tornando-as muito
mais dependentes do exterior em matéria de consumo e bens de investimentos -
justo eles, que se diziam de esquerda e, com diferença de graus,
anti-imperialistas...
Em terceiro lugar, deixaram heranças econômicas amargas
para seus sucessores, que se revelaram, infelizmente, plenamente despreparados
para governar de verdade, isto é, entender a situação, antecipar-se aos
acontecimentos, formular e implantar estratégias de recuperação, saber
comunicar-se e amenizar as expectativas pessimistas sobre o futuro de suas
economias e de seus países.
Tudo em termos relativos, é óbvio. Na Venezuela, em face do maior
subdesenvolvimento e do componente ditatorial do regime chavista, a crise tem
sido infinitamente pior. A economia e o abastecimento derreteram. A inflação
avizinha-se dos 60% ao ano - é a maior do mundo. Há forte escassez de alimentos.
O preço do dólar paralelo é oito vezes maior que o oficial. A falta de divisas
paralisa as atividades que utilizam insumos importados e provoca
desabastecimento de 50% dos medicamentos. Por isso tudo, os antagonismos
tornaram-se muitíssimo mais exacerbados. Há motivos de sobra para as pessoas
irem às ruas reclamar.
O governo venezuelano já tinha suprimido na prática a liberdade de imprensa e
fechado os caminhos da oposição e agora reinaugurou no continente a era das
prisões políticas e do assassinato de opositores anônimos, com suas forças
paramilitares. Uma espécie de SA nazista à moda venezuelana. O desenlace poderá
ser trágico, mesmo que o presidente Nicolás Maduro continue sob a proteção da
alma dickenseniana de Chávez, com quem ele assegura conversar regularmente.
O PT tem afinidade eletiva com o chavismo e a reação do governo brasileiro
ante a repressão aos manifestantes de oposição na Venezuela trouxe a política
externa do Brasil ao seu nível mais baixo desde 1965, quando o
general-presidente Castelo Branco, na postura de ajudante de ordens do
presidente Lyndon Johnson, mandou tropas para auxiliarem os EUA na invasão da
República Dominicana. Nessa época eu vivia no exílio e convivia com estudantes
de vários países da América Latina - os leitores não calculam a vergonha que
dava ser brasileiro naquele momento da invasão. No episódio venezuelano não
estão envolvidas tropas, mas houve um sopro de maior covardia: foi disfarçado de
membro do Mercosul que o Brasil subscreveu o manifesto que culpou as vítimas
pelos massacres e pela instabilidade do governo de Maduro.
Quando foi deposto o presidente Fernando Lugo, dentro das regras
constitucionais, o petismo e o kirchnerismo resolveram suspender o Paraguai do
Mercosul, invocando a cláusula democrática, que virou piada. Aproveitaram para
aprovar o ingresso da Venezuela no bloco, ao qual os paraguaios se opunham, com
poder de veto.
A estupidez política, finalmente, se casava com a estupidez econômica. O pior
do Mercosul não veio do atual governo brasileiro nem dos Kirchners ou de Maduro.
Nasceu nos governos Collor e Menem, no início dos anos 90, quando previram um
acordo que criaria, além de uma zona de livre-comércio entre Brasil, Argentina,
Paraguai e Uruguai - o que era correto -, também uma união alfandegária em
quatro anos, o que Europa demorou 40 para fazer. Ou seja, se o Brasil quiser
fazer um acordo com algum país para ampliar seu comércio, os demais membros do
Mercosul têm o direito de obstruir ou vetar caso não se sintam bem
atendidos.
Isso é o que está acontecendo, por exemplo, com a tentativa brasileira de
negociar com a União Europeia (UE), que já dura mais de dez anos. Os argentinos
têm retardado a negociação, e podem fazê-lo, embora de forma humilhante para
nós: em reunião preparatória já exigiram até que o Brasil se retratasse das
declarações da nossa embaixadora junto à UE, que havia atribuído a eles o
notório atraso na apresentação da proposta conjunta.
A solução mais fácil, porém, não é ficar brigando com a Argentina, mas acabar
com a união alfandegária de vez, deixando ao Mercosul a tarefa já hercúlea da
zona de livre-comércio, hoje tão incompleta. Só que isso vai contra um dogma do
atual governo brasileiro: transformar facilidades em dificuldades.
O colapso da política externa brasileira é apenas um detalhe da perda de rumo
de um partido e de um projeto de governo que fracassaram. Sua agenda evaporou-se
e, agora, os petistas estão à cata de outra qualquer que lhes permita montar,
para usar o termo da moda, uma narrativa eficaz para a campanha eleitoral. Com a
agravante de que aquela cascata da suposta "herança maldita recebida do
neoliberalismo" já não cola. Não é mais possível demonizar as privatizações,
agora que o PT se ajoelha no seu altar, orando pelo advento da grande panaceia
para tudo.
O governo atual conseguiu a façanha de combinar a estagflação com
expectativas péssimas sobre o futuro da economia, piores até do que os
principais indicadores justificariam. O grande pesadelo dos agentes econômicos
hoje não são o baixo crescimento, os juros siderais (de novo, os maiores do
mundo) ou o déficit externo, o terceiro mais alto do planeta em volume e o
segundo como porcentagem do PIB. O que os assusta de verdade é a possibilidade
de que esse governo se prolongue por mais quatro anos. Haja aflição!