sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

"Chore por mim, Argentina", por Roger Cohen, do New York Times

‘Uma nação intoxicada pelo peronismo’

O Globo
 
 
USHUAIA, Argentina - Uma boa expressão, olhando para a América do Sul pós-boom das commodities, é que o Brasil está num processo de se tornar a Argentina; a Argentina num processo de se tornar a Venezuela; e a Venezuela num processo de se tornar o Zimbábue. Mas esta é uma afirmação um pouco injusta com Brasil e Venezuela.

A Argentina, no entanto, é um caso perverso em si mesmo. É uma nação ainda intoxicada pelo quixotesco quadro político chamada peronismo; engajada numa guerra sem fim contra qualquer dado econômico confiável; oscilando com sua taxa de juros de múltiplos níveis; fechada em relação ao capital global; abocanhando propriedades privadas quando bem lhe convém; obcecada com a derrota de uma pequena guerra há mais de três décadas nas Malvinas; e convencida de que a causa de todos os males provém de poderes especulativos, que tentam forçar uma nação orgulhosa — nas palavras de sua presidente — “a voltar a tomar sopa com garfo”.

Um século atrás, a Argentina era mais rica do que Suécia, França, Áustria e Itália. Era bem mais rica do que o Japão. Olhava com desdém para o pobre Brasil. Com o terreno mais fértil do mundo nos Pampas, ela parecia ampla e vazia para os imigrantes que chegavam em busca de um potencial Estados Unidos (a renda per capita agora está a um terço ou menos do que o nível americano). Os argentinos não poderiam imaginar que um “coronel” chamado Juan Domingo Perón e sua mulher Eva (“Evita”) iriam desenhar um singular ethos delirante de poder.

— A Argentina é um caso único de um país que completou a transição para o subdesenvolvimento — afirma Javier Corrales, cientista político da Amherst College.

Em termos psicológicos — e Buenos Aires está cheia de pessoas deitadas em divãs extravasando suas angústias aos psicanalistas —, a Argentina é uma criança entre as nações que nunca cresceram. Responsabilidade não é com ela. E por que deveria? Há tanto a ser explorado, tanta riqueza em grãos e pecuária, que desenvolver instituições sólidas e a regra da lei — e mais ainda um sistema tributário que funcione — parecem uma perda de tempo.

Imigrantes com passaportes estrangeiros acamparam no país, em vez de serem absorvidos num processo de formação de uma nação, como no Brasil ou nos Estados Unidos. A Argentina estava situada longe, na parte mais baixa do mundo, um território fértil distante o suficiente dos centros de poder para viver suas próprias fantasias periféricas ou afogar suas mágoas no que provavelmente deve ser a dança mais triste (e assombrosa) do mundo. Então, a Argentina inventou sua própria filosofia política: uma estranha confusão de nacionalismo, romantismo, fascismo, socialismo, atraso, progresso, militarismo, erotismo, fantasia, música, lamentações, irresponsabilidade e repressão. O nome que resume isso tudo é peronismo. E mostrou-se impossível de ser abalado.

Perón, que descobriu que um oficial militar poderia conseguir a ascensão política ao forjar laços com os pobres da América Latina, distribuindo dinheiro (uma lição aprendida por Hugo Chávez), foi deposto no primeiro de quatro golpes no pós-Guerra. A Argentina que cobri nos anos 1980 estava começando a emergir do trauma do regime militar. Se posso pensar numa imagem emblemática do continente naquele momento é a do choro incontrolável de mulheres argentinas com as fotografias de seus filhos amados, que foram levados para “averiguação” e desapareceram para sempre. As juntas militares no continente tornaram “desaparecer” num verbo transitivo. Era o que faziam com os inimigos — 30 mil deles na Argentina.

Desde 1983 a Argentina abandonou sua autoritária relação militar-civil, julgou alguns violadores de direitos humanos e vem sendo governada democraticamente. Mas, durante quase todo esse período, tem sido dirigida por peronistas, mais recentemente Néstor Kirchner e sua viúva, Cristina Fernández de Kirchner (uma evocação de Isabel, viúva de Perón), que redescobriu a redistribuição, após um flerte do peronismo com neoliberalismo nos anos 1990. O populismo econômico está vivo e bem.

Assim como gastos, nos bons tempos, e medidas ilegais, nos maus. E também evocações cansativas de Perón, Evita e Isabel: assim na terra como no céu.

O fim do mundo

Há 25 anos, deixei o país com hiperinflação (5.000% em 1989), fuga de capitais, instabilidade cambial, pesado intervencionismo do Estado, reservas encolhendo, indústria não competitiva, grande dependência de exportações de commodities, volta de fantasias peronistas e complexos de fim de mundo. Hoje, a inflação está alta em vez de hiper. Do contrário, o resto pouco mudou.

Ao atracar em Ushuaia, no extremo Sul da Argentina, a primeira coisa que vi foi um sinal que dizia que as Ilhas Malvinas estão sob ocupação ilegal pelo Reino Unido desde 1833. A segunda foi um aviso num poste informando que a Irlanda está localizada a 13.199 quilômetros de distância (sem mencionar o Reino Unido). A terceira foi um pacote de biscoitos “made in Ushuaia, o fim do mundo”. A quarta foi uma calculadora de bolso usada por um lojista para calcular a taxa de câmbio entre o peso e o dólar.

A esperança é algo difícil de banir do coração humano, mas é preciso dizer que a Argentina faz de tudo para isso ocorrer.