O Estado de São Paulo
"Hey! Matilda, Matil-da, she take me money and run Venezuela." Se invertemos
as frases desse calipso celebrizado por Harry Belafonte nos anos 1950, talvez
tenhamos uma boa visão das relações do Brasil com a Venezuela.
As relações comerciais quadruplicaram com a ascensão do chavismo, com saldo
brasileiro. O País tornou-se o terceiro parceiro comercial da Venezuela,
perdendo apenas para os EUA e a China. Não só os alimentos da chamada cadeia
proteica, principalmente carne bovina, são vendidos por lá, também a água
mineral nos restaurantes de Caracas costuma ser brasileira. A Embraer vende
aviões, a Odebrecht e a Camargo Corrêa buscam se consolidar associando-se ao
setor petroleiro. Enfim, tudo parece correr bem para os nossos negócios.
Até na fronteira, em Santa Helena do Uairen, fiquei sabendo que as compras
foram recordes nos grandes feriados. O real valia 2,8 bolívares e nossos
turistas levavam tudo o que podiam nos seus carros abastecidos com gasolina
subsidiada pelo governo de lá. Na estrada entre Boa Vista e Santa Helena podem
ser vistos os traços de um grande comércio formiguinha, o do contrabando de
gasolina. Várias carcaças de carros marcam o curso da estrada, de modo geral
queimadas e abandonadas por contrabandistas fugindo da polícia.
Neste momento pós-Chávez, em que a Venezuela entra numa crise, o governo
endurece a repressão aos opositores, compactua com grupos armados que atiram na
multidão, prende e tortura manifestantes, o que o Brasil pode dizer? Laços
comerciais não impediram que o maior parceiro da Venezuela condenasse a política
de Nicolás Maduro e o aconselhasse a considerar o que pedem os seus opositores.
Mas os americanos são los americanos. O nó que nos ata à Venezuela não é apenas
comercial, mas ideológico.
Existe um medo de condenar os erros da política de Maduro porque, desde os
primórdios do tempo, um princípio aterrador domina a esquerda: não mencionar os
fatos que possam fortalecer o campo adversário. Nesse processo, a omissão ou
mesmo a distorção dos fatos passam a ser vividas como um mais alto dever, o de
preservar a experiência revolucionária. Isso vale para Cuba e para a Venezuela,
uma vez estão entrelaçados e o próprio know-how repressivo cubano foi
transplantado para o chamado socialismo do século 21.
O general Angel Vivas, entrincheirado com um fuzil na sua casa em Prado del
Este, afirmou no Twitter que estava para ser presos por cubanos e gente da
Guarda Nacional Bolivariana. Vestindo camisa vermelha, motociclistas armados
atiraram na multidão. Atingiram a cabeça da Miss Turismo de Carabobo. Que perigo
Génesis Carmona, de 22 anos, representava para o tal socialismo do século 21?
Que perigo representam todos os estudantes que estavam com ela protestando
contra o governo?
São golpistas, diz Maduro. Mas Nicolás Maduro é uma rara espécie de
visionário. Ele vê Hugo Chávez transfigurado num passarinho, vê o rosto de
Chávez numa escavação de metrô e sua visão mais cômica se deu na cela onde está
preso Leopoldo López. Maduro afirma que um desconhecido foi preso tentando
entrar na cela de López com inúmeros mapas das instalações petrolíferas do país.
Mesmo um roteirista de cinema teria dificuldades de dar um toque de realidade a
essa versão. Como ter acesso à cela de López? De que adiantariam para ele os
mapas na prisão? Por que não estudaram esses mapas nos longos anos de
liberdade?
Maduro é condutor de um processo que arrebata ainda a simpatia de alguns
europeus e de uma faixa da juventude de esquerda. O único fator a que se apegam
seus defensores é o apoio popular. Mas mesmo esse apoio começa a ser corroído.
Ao ler mais atentamente os textos do Tal Cual, percebi que ao mencionar a
oposição o jornal diz também que alguns chavistas discordam da repressão de
Maduro. Horas depois constatei que falava de algo real: o governador de Táchira,
José Vielma Mora, criticou a prisão de López e condenou os métodos do governo.
Vielma Mora é chavista.
Num momento tão dramático para o continente, estamos atados a dois nós. Para
desatar o primeiro, o econômico, é preciso introduzir um visão de médio prazo. A
economia venezuelana está em decadência e muito provavelmente os negócios não
serão tão sedutores nem os pagamentos, pontuais. Sempre teremos relações com a
Venezuela: é preciso pensar nisso, antes de embarcar na canoa de Maduro.
Para desatar o segundo nó, o ideológico, é preciso levar o governo ao debate,
saber o que está vendo na crise venezuelana. Se confiar só em Maduro, verá
passarinhos durante o dia e carneirinhos antes de dormir. Como é possível
identificar-se com um projeto que melhorou as condições imediatas dos pobres,
mas está se mostrando insustentável em termos econômicos, mata misses, sufoca a
imprensa, prende estudantes, aterroriza a oposição?
Não tenho esperança de convencê-los, como não tinha de convencer as pessoas
de que o mundo não acabaria em 2012. Mas quando se trata de uma questão política
que envolve a imagem internacional do Brasil é preciso buscar um mínimo de
convergência. É preciso que o governo compreenda que criticar a violação dos
direitos humanos na Venezuela não é dar munição aos adversários de Nicolás
Maduro. Ela foi dada pelo próprio Maduro quando viu uma tentativa de golpe num
movimento de protesto. A munição nasce dos fatos e quando começamos a negá-los
por um dever de consciência alguma coisa está errada com o próprio sentido da
palavra.
Compreendo que o governo tem ganho as eleições e, no momento, desfruta o
apoio da maioria. Mas isso o autoriza a vestir uma camisa partidária em nosso
peito juvenil e outros peitos de idade mais avançada?
Traçamos uma linha imaginária no século passado e continuamos a nos orientar
por ela. Esquerda ou direita? E estamos levando o nosso rigor geométrico para os
cemitérios: mortos de esquerda ou de direita?
Diante de nós, a Venezuela em transe.