quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

"Do Valongo ao Deutsche Bank", por Elio Gaspari

O Globo

  • O banco alemão e a Siemens fazem pelos brasileiros do século XXI o que fizeram os ingleses do XIX

A Portela vai para a avenida cantando o Cais do Valongo. Até 1831 passaram por ele um milhão de escravos, vindos “de Angola, Benin e do Congo”. O tráfico de escravos só foi proibido em 1850, mas anos depois um dos magnatas do Império foi apanhado contrabandeando negros que eram levados para um viveiro na Restinga da Marambaia. No século XXI, o presidente da República passava feriadões nessa propriedade como se ela fosse apenas um ponto aprazível do litoral do Rio.

A Inglaterra aboliu a escravidão em 1833 e inaugurou a primeira rua com luz elétrica em 1878. O avanço tecnológico levou cinco anos para chegar ao Brasil, em Campos. Já o avanço social, a abolição, levou 55 anos. Tendo sido o primeiro país da América do Sul com iluminação elétrica na rua, foi o último a acabar com a escravidão. A pressão veio de fora para dentro.

De fora para dentro vem outro benfazejo progresso social. O Deutsche Bank acaba de aceitar um acordo pelo qual indenizará em US$ 20 milhões a prefeitura de São Paulo por ter sido o conduto pelo qual o ex-prefeito Paulo Maluf expatriou US$ 200 milhões da Viúva. Esse dinheiro foi achado em 2001 pela polícia da Ilha de Jersey, um pequeno território autônomo do Canal da Mancha. (Ganha uma viagem à Coreia do Norte quem achar que operações desse tipo nunca passaram pela banca nacional.)

Some-se a esse ato de contrição a conduta da Siemens ao colaborar com o Ministério Público nas investigações do cartel dos fornecedores de equipamentos para os governos tucanos de São Paulo. Nessa rede operava a francesa Alstom. Trata-se de uma ladroeira denunciada pela primeira vez em 1995, que se arrastava na burocracia nacional, mas ganhou um novo (e letal) alento com a decisão da Siemens.

O Deutsche Bank e a Siemens não foram convertidos à causa da moralidade pelas lições do Papa Francisco. Fizeram o que fizeram porque temeram as leis de seu país e as normas de organizações internacionais. Como ocorreu no século XIX com o tráfico, tornou-se melhor negócio sair dele. Durante as farras da ditadura, o presidente do Deutsche Bank foi um queridinho do Milagre. Já a Siemens fartou-se no ruinoso Acordo Nuclear dos anos 70.

É comum que empresas americanas mobilizem suas embaixadas para sinalizar que estão sendo prejudicadas por transações misteriosas na burocracia nacional. Há alguns anos, uma licitação da Infraero foi posta nos trilhos depois de uma palavrinha da diplomacia americana. Em outros casos, há diretores que acham que podem dançar pela melodia nativa. Assim fez o grupo Brookfield, que opera no mercado de shoppings. Em 2012 uma ex-diretora da empresa denunciou que ela pagara R$ 1,6 milhão em propinas à rede de Hussain Aref Saab, o encarregado da liberação de obras na prefeitura de São Paulo.

O doutor amealhara um patrimônio de 106 imóveis. A Brookfield informou que não sabia de “supostos atos de suborno”. Ficaria tudo na mesma, mas entrou no caso a Security Exchange Commission, que vigia o comportamento das empresas americanas. Bingo. Quando a prefeitura detonou a quadrilha dos fiscais, a Brookfield mudou suas regras e confirmou ao Ministério Público um capilé de R$ 4,1 milhões. Podiam ter feito isso em 2012.