sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Aos 88 anos, Pitangui descarta aposentadoria: ‘Quando o ser humano faz o que gosta...’

Raphaela Ribas - O Globo

O mestre da cirurgia plástica, que parou de operar há um ano, descarta aposentadoria e diz que dentro das limitações, profissionais devem seguir fazendo o que gostam


A cirurgia dele começa sem o bisturi. De bom papo e língua afiada, um dos maiores nomes da cirurgia plástica mundial, o mineiro Ivo Pitanguy, começa a contar sua história, aquela que está em livros e que muita gente já sabe, exceto por uma mudança: não opera mais. Em uma conversa no seu escritório na clínica que leva seu nome, o mestre da beleza volta um pouco no tempo e lembra que, após terminar a graduação, conseguiu uma bolsa nos Estados Unidos para estudar. No retorno, começou o trabalho na Santa Casa, que mantém até hoje, onde, junto à sua equipe, analisa tanto casos de estética quanto de reparação. Isso, entre outras atividades que incluíram, ainda, a criação de 22 técnicas na cirurgia plástica ao longo de mais de seis décadas de carreira.

‘Na primeira cirurgia, ainda estudante, só assisti, mas quando vi aquele sangue todo, desmaiei.’
- IVO PITANGUYAo falar do início da carreira
Apaixonado por Ingrid Bergman na adolescência (“Ah, ela tinha uma beleza que transcendia”, define), um dos pioneiros na formação da cirurgia plástica no país e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) tem um currículo profissional extenso, e com honrarias. 

Agora em setembro, aliás, lança sua autobiografia, “Viver vale a pena”, pela Casa da Palavra. O legado que tem construído também teve seus percalços, claro, como o período em que estudou lá fora, no início, e passou quatro anos ganhando uns US$ 100 por mês, trabalhando o dia inteiro.

Mas, assim como muitos profissionais que amam o que fazem, aposentadoria é uma palavra que não existe para ele. Há controvérsias sobre a data do seu nascimento. O registro diz 1926, mas seu pai teria colocado a data de três anos a menos em sua certidão.

O médico mata a charada: “Vamos dizer que estou com mais de 80 e menos de 90”, brinca. Famoso ainda por ser o queridinho de celebridades de todo mundo, até as de Holywood — dizem (porque ele não fala sobre seus pacientes) — há um ano, Pitanguy parou de operar.


— Agora, resolvi, uma coisa muito lógica dentro deste meu período: fazer o que eu gosto muito, que é dar consultas — destaca, acrescentando que o importante é o que a carreira lhe proporciona. — Continuo na medicina, dentro das minhas limitações. 

Podendo ser útil, lhe dá satisfação de estar vivo. É a satisfação íntima.

O senhor sempre disse que nunca tinha feito plástica. Sua pele parece tão boa. Mantém-se invicto ou já mudou de ideia, pergunto:

— Na realidade, eu gostaria de fazer, mas estou esperando a época certa (risos). Eu sempre digo que melhor que ter um bom cirurgião é ter um bom ego. Quando não me tolerar mais, vou procurar uma cirurgia.

1) Por que a cirurgia plástica?
IVO PITANGUY — A primeira conquista é se encontrar. No meu caso, o que me conduziu a este encontro foi meu pai. Ele era cirurgião, e eu, ainda menino, o via chegando em casa cansado e saindo feliz no dia seguinte. Aquilo me chamava a atenção. Fui criado numa família humanista, que não buscava dinheiro, mas sim a busca de si mesmo. Fui fazer medicina, então. Na primeira cirurgia, ainda estudante, só assisti, mas quando vi aquele sangue todo, desmaiei. Nunca tinha visto tanto sangue assim na minha vida (risos). Mais tarde, durante anos, vim ao Rio para servir aos Dragões da Independência. Na época, sentia que as pessoas saíam machucadas e não davam importância à autoestima, que era tão importante. O transtorno não é só aquele do trauma, mas também o que ele causa intimamente a cada um. É aquilo que Freud queria mostrar, não é só a doença orgânica, tem a doença da alma também. Então, esse sentido todo tem um aspecto muito importante da parte social da cirurgia plástica, aquele desempenho de colocar a pessoa dentro do seu meio e ela se sentir bem com a sua imagem. E isso não é um direito só da elite, e, então, criei na Santa Casa tanto a reparadora quanto a de estética.

2) O médico acaba sendo também um psicólogo, então? Alguns casos o senhor recusa a cirurgia?
Sim, acaba sendo um psicólogo, pois tem que ter uma interação com o paciente. Numa consulta, o médico vai ouvir, examinar e ver o que pode ser feito dentro da expectativa do paciente. Pode ser estético ou reparador, o que importa é o que te faz sofrer. Dentro disso, você pode ter uma expectativa maior que, então, cabe a mim explicar. Você pode entrar aqui e querer se parecer com a Greta Garbo... Ah, hoje em dia são outros, né? Antigamente havia um grupo menor e o artista era sinônimo de beleza. Quando eu era garoto, minha paixão era aquela sueca, Ingrid Bergman. Ela não era tão bonita assim, mas tinha uma beleza espiritual, algo que transcendia. Tem a história de Fausto, uma lenda antiga que é a busca de pessoas pela poção da juventude, onde ele vende a alma ao diabo em troca disto. Nós não temos esta poção mágica, e acho eu que ninguém quer vender sua alma, não é mesmo? As pessoas acham que é isso às vezes, mas existem limitações, tem o biotipo, a etnia, e é importante conviver com a sua forma de ser. Cada caso é um caso, e é isso que o médico vai orientar dentro desta interação. Às vezes, é alguma coisa que te incomoda e atrapalha o fluir da sua vida, e isso só a pessoa sabe o que a atrapalha e a importância do quanto aquilo lhe causa sofrimento. Toda vez que você tem um paciente tem que ter uma interação para senti-lo e conduzir. Em alguns casos, é conduzir para um tratamento de se reencontrar mais com o lado psicoterapêutico do que somente na cirurgia. E, algumas vezes, a cirurgia é a grande psicoterapeuta. Então você seria um psicólogo com o bisturi na mão. Mas, há situações que com a cirurgia, se consegue melhorar muitos anos de sofrimento que só a psicoterapia não conseguiria. Só a pessoa sabe o que está sofrendo. Isso que eu chamo de interação.

3) O senhor desenvolveu 22 técnicas e é uma referência em ensino e cirurgias. Como foi este processo?
Passei um período fora para estudar cirurgia plástica e fui transmitindo as técnicas. Durante o processo, você vê o que funciona bem e nem tanto, e vai criando técnicas e se consolidando. Como todo médico vai adquirindo experiência, não se deve reinventar a pólvora. Daí a importância da formação, de procurar melhores resultados dentro do que já existe. Depois, dentro das dificuldades que enfrenta, surge a criatividade e você encontra uma técnica que dá um melhor resultado para determinados problemas que apareçam. Então, naquela hora, você pode ter um momento de criatividade. Mas, antes de publicar, se olhar com cuidado, verá que já ocorreram outras ideias. Na medicina, nada é totalmente novo. Aquele período em que fui para fora, porque na época não havia escola de formação, e que passei quatro anos ganhando uns US$ 100 por mês, trabalhando o dia inteiro, era uma luta. Mas tudo com alegria. Ao longo destes anos, há também uma luta enorme. É importante sentir que você não chegou ainda, que pode sempre melhorar, em qualquer atividade humana.

4) O que mudou de 50 anos para cá na medicina, na sua clínica e no médico Ivo Pitanguy?
Nunca tive noção de cronologia, por isso sobrevivo (risos), mas isso para meu conforto íntimo. São 50 anos? Do ponto de vista de conferências, por exemplo, a tecnologia favoreceu. Eu fazia muitas viagens e tinha que levar uma mala pesada com vários slides, porque nossa parte é muito visual, e às vezes brigavam porque era uma segunda mala de mão. Quando surgiu a digitalização, me lembro de levar tudo em um só pen drive. E tem a clínica, que permitiu que eu continuasse toda a parte acadêmica. Aqui, nós realizamos a formação dos médicos e residentes, tanto na parte de estudos quanto de operação. São duas partes, sendo que para os estudos temos o auditório e a biblioteca. Na Santa Casa, é feito o mesmo trabalho, com os mesmos métodos e os mesmo médicos. Existe uma unidade da filosofia e a fusão da parte científica. Mas a cirurgia em si não sofreu nenhuma grande modificação, porque no Brasil ainda é muito artesanal, por isso continuamos com boa qualidade com poucos recursos na Santa Casa. O médico ainda é o maior recurso. Não há nada totalmente novo na medicina.
‘Talvez uma das coisas pelas quais eu mais gostaria de ser reconhecido é ter passado esse conhecimento’
- IVO PITANGUYsobre oprazer de ensinar
5) O senhor diz que quando se formou, na década de 40, a falta de qualificação no Brasil lhe fez buscar conhecimento no exterior. Como está isso hoje?
Na minha geração, não tinha muita opção, não se ensinava muito. Existia uma certa vaidade dos médicos, que não queriam passar adiante o que sabiam. Então, para mim, ensinar e passar o conhecimento foi uma meta constante na vida. Daí, eu ter criado o serviço que existe na Santa Casa há mais de 50 anos, a minha satisfação maior em ter estimulado outros. E estes discípulos já são professores de outras gerações. É toda uma família que vai se criando dentro de uma filosofia que é a de transmitir o conhecimento. Isso mudou no Brasil e atualmente temos um ensino de qualidade, o que faz com que a população seja bem atendida e que o número de charlatões seja menor. Talvez uma das coisas pelas quais eu mais gostaria de ser reconhecido é ter passado esse conhecimento.
 
6) Parou de operar?
Até há um ano atrás eu operava. Agora, resolvi, uma coisa muito lógica dentro deste meu período: fazer o que eu gosto muito que é dar consultas. Estou procurando dar aqui na clínica uma continuidade dentro daquilo que construí durante todos estes anos. Mas pessoalmente não uso mais a força física. Ainda faço orientação, indicação e, em alguns casos, acompanho. Isso me dá satisfação e também um certo auxílio em certos casos, junto ao meu corpo clínico que é muito bom.

7) A palavra "aposentadoria" existe para o senhor?
Não, quando o ser humano faz o que gosta... Eu antes mergulhava e hoje mergulho menos. Posso continuar em contato com a água, só que dentro das minhas limitações. Continuo dentro das minhas limitações. Podendo ser útil, lhe dá satisfação de estar vivo. É a satisfação íntima.


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