domingo, 31 de agosto de 2014

"A encruzilhada de Obama", por Dorrit Harazim

O Globo

Presidente disse que os EUA só bombardeariam o Isis na Síria se a defesa da nação americana estivesse ameaçada

Dentro de pouco mais de uma semana, o noticiário estará repleto de referências a mais um aniversário do fatídico 11 de setembro de 2001. Lembranças, flashbacks, consequências, comparações históricas serão evocados. Inclusive as mais capengas: o ataque terrorista contra os Estados Unidos já chegou a ser comparado, em impacto para a desordem mundial, ao atentado contra o arquiduque Francisco Ferdinando de 1914 que desembocou na Grande Guerra.

Dias atrás, ao abortar suas férias para tratar do atual balaio de crises regionais entrelaçadas, o presidente Barack Obama disse três coisas que remetem ao 11 de Setembro e que passarão a ser minuciosamente dissecadas. Primeiro, que um ataque militar dos Estados Unidos contra os jihadistas do Isis atuando na Síria não é iminente. 

(Para quem se perde um pouco na sopa de siglas do terror no Oriente Médio, o Isis ou Isil, ou Estado Islâmico, agora instalado no Norte do Iraque, é o grupo que tem por estratégia divulgar pela internet, em tempo real, as matanças, decapitações e torturas que pratica).

Obama também declarou que, como comandante em chefe das Forças Armadas, o presidente dos Estados Unidos não precisa de autorização do Congresso para agir. E que os Estados Unidos só bombardeariam o Isis na Síria se a defesa da nação americana estivesse ameaçada.

Difícil será encontrar uma justificativa legal para lançar ataques aéreos sobre um país que, ao contrário do Iraque, não pediu ajuda nem autorizou claramente uma ação dessa natureza. Já por isso, um trio de deputados democratas enviou um ofício aos demais membros do Congresso sugerindo cautela antes de conceder uma eventual autorização do uso de força militar a Obama para erradicar o Isis.

Entre os signatários, um nome que honra a enxovalhada classe política em geral e a função de membro do Legislativo em particular: Barbara Lee.

Para entender de quem se trata, basta ouvir o programa de rádio “Crazy power of words”(O louco poder das palavras), produzido pela emissora pública WNYC de Nova York , acessível via YouTube.

O programa baseia-se numa extensa reportagem do premiado jornalista e escritor Gregory Johnsen e tem como ponto de partida a manhã seguinte à hecatombe do 11 de Setembro.

Os Estados Unidos estavam desorientados e de joelhos após o pior ataque de sua História em solo americano. Sentado à frente de um computador numa das salas da Casa Branca, o subprocurador-geral do governo de George W. Bush, Timothy Flannigan, de 48 anos, recebera a incumbência de produzir um memorando de declaração de guerra dos Estados Unidos. E rápido, para aprovação do Congresso.

Mas como declarar guerra contra um atentado? O terrorismo não tem sede, capital, não é país, existe em qualquer parte do mundo, o grupo de hoje desaparece amanhã.

Flannigan, não sabendo por onde começar, fez o que qualquer estudante de terceira série faz: consultou a internet e pescou um precedente de 1991, usado na primeira Guerra do Golfo contra o Iraque. Capturou o texto, transformou-o em documento Word e começou a trabalhar em cima do modelo. Auxiliado por duas figuras sombrias da era Bush, David Addington e John Yoo, ele fez alguns cortes, inseriu acréscimos, alterou frases e pronto — apertou a tecla send.

O texto foi recebido pelos legisladores reunidos no Capitólio sob ambiente sombrio e pesado. Tinham se passado apenas 72 horas desde o aterrador ataque. Barbara Lee, ativista negra desde a década de 60 que cresceu no Texas segregacionista dos anos 50, debatia a situação com sua bancada. “Estávamos confusos”, relembra ela hoje.

Tecnicamente, numa emergência como a do 11 de Setembro, o ocupante da Casa Branca, exercendo o cargo de comandante em chefe, pode decidir defender militarmente a nação sem precisar da autorização do Legislativo. Mas, pela Constituição, o poder de declarar guerra cabe ao Congresso, não ao Executivo. E Bush não queria agir sozinho.

O instrumento foi intitulado Autorização para o Uso da Força Militar (AUMF, sigla em inglês), pois desde a Segunda Guerra não se utilizava mais a clássica Declaração de Guerra. Era deliberadamente vago. Segundo a expressão cunhada por Gregory Johnsen, são “as 60 palavras que definiram os Estados Unidos nos últimos 20 anos”:

“O presidente está autorizado a usar toda a força necessária e apropriada contra nações, organizações ou pessoas que ele considere terem planejado ou ajudado os ataques terroristas ocorridos em 11 de setembro de 2001, ou que tenham abrigado essas organizações ou pessoas, e a reverter quaisquer atos futuros do terrorismo internacional contra os Estados Unidos por parte dessas nações, organizações ou pessoas.”

Barbara Lee, então com 55 anos, não dormia há duas noites debatendo e consultando com amigos. “Estávamos em choque, com dor e raiva, e falávamos do estado d’alma da nação”, conta a deputada, formada em psiquiatria social. “E sabidamente não se devem tomar decisões quando se está de luto ou com medo. Por outro lado, como ficar contra o presidente do meu país num momento desses?”

Aprovado no Senado por todos os 96 presentes, o texto seguiu para votação na Câmara, que se esperava igualmente uníssona.

Depois dos 16 primeiros “Sim”, chegara a vez de Barbara Lee. “Agonizei em torno deste voto”, anunciou ela para o plenário lotado, “mas me reconciliei com ele hoje durante uma missa em homenagem às vítimas. Ao agir, não nos tornemos o mal que queremos erradicar, disse-nos o reverendo. Meu voto é ‘Não’”.

Colegas ainda tentaram dissuadi-la de ser a única voz dissonante de um placar que seria 420 x 1. Em vão. Durante semanas, meses, anos, o gabinete da deputada foi inundado por mais de 60 mil cartas chamando-a de traidora, terrorista, desonra nacional. Sua carreira parecia enterrada.

Mas um telefonema valioso lhe chegou no dia seguinte à votação. “Tenho orgulho de você, filha”, ouviu do pai, um tenente-coronel do Exército que servira na Segunda Guerra e na Coreia.

E, um ano após ser considerada pária nacional, a representante da Califórnia foi reeleita para um terceiro mandato. Anteviu o que o país não quis ver.

Chegou a vez de Obama escolher se quer trombar com Barbara Lee de frente ou prefere tê-la a seu lado.