A falência da fé pública e do Estado, no mundo e no Brasil, gera a falta de políticos dignos do respeito cívico. Raras pessoas podem ser vistas como lideranças fidedignas, capazes de orientar as massas que pagam impostos e quase nada recebem em troca. John J. Mearsheimer afirma algo que deveria ser óbvio: “As democracias operam melhor quando incluem um mercado razoavelmente eficaz de ideias, que só funciona quando os cidadãos têm informações seguras e existem altos níveis de transparência e honestidade” (Why Leaders Lie: the Truth about Lying in International Politics).
A prova de que a legitimidade sofre um abalo em nossos dias a temos no fato de que a maior parte dos políticos e partidos, quando apanhados com a mão no pote, prefere atacar... a moral pública, aplicando-lhe um sufixo comum na boca dos sofistas. Falar contra o roubo do erário seria apenas... Moralismo!
E segue a degradação da República com os maquiavéis nanicos que procuram não apenas sujar os próprios dedos, mas impor a bandalheira como algo positivo, tendo em vista miragens sublimes como a melhoria econômica, a governabilidade, etc. A hegemonia do Poder Executivo, em todos os Estados democráticos modernos, tem corroído a língua e os costumes políticos. No Brasil o problema é ainda mais grave.
Em nossa terra, com os resquícios das prerrogativas imperiais, o Executivo federal prejudica a Justiça e adquire votos no Parlamento com 30 dinheiros. Ele gera e gere a traição do mandato popular em troca de recursos orçamentários. Na balança dos Poderes, o peso maior pertence à Presidência da República. O Supremo Tribunal Federal (STF), cuja missão seria a de preservar a Carta Magna, não raro agiu como ator numa Realpolitik que tolerou abusos ditatoriais, de Vargas a 1968.
Nossos presidentes, caso pudessem, repetiriam a fala de Tiago 1: o governante “tem poder de vida e morte; julga acima dos súditos em todos os casos e só deve prestar contas a Deus”. Francis Bacon diz que os juízes devem ser leões sob o trono. Infâmias foram cometidas pela Justiça no Estado moderno. Uma coleta de julgamentos tirânicos é trazida por H. Fernandez-Lacôte (Les Procès du Cardinal de Richelieu, 2010).
John Campbell traz uma outra amostra de capachos togados (Atrocious Judges. Lives of Judges Infamous as Tools of Tyrants and Instruments of Oppression, 1856). Magistrados em demasia agiram como escabelo do trono. Mas nem todos.
Evandro Lins e Silva foi juiz e nunca se calou diante dos poderosos. Ao contrário dos supostos democratas que odeiam a imprensa, ele defendeu jornalistas de 1934 até o seu último alento. Ao lado de Sobral Pinto, penetrou a alma brasileira ao acolher oposicionistas, desde 1932.
No Supremo, Evandro julgou presos políticos relevantes: Mauro Borges, Plínio Coelho, Seixas Dória, Miguel Arraes, Vieira Neto, Sérgio Rezende, Caio Prado Júnior, Niomar Muniz Sodré, Ênio Silveira. Os ditadores deram-lhe alto prêmio ao arrancá-lo do STF. O poder brasileiro sempre procurou domesticar juízes, no Império e na República.
Fui à missa de sétimo dia, quando um grupo pequeno rezou pela alma de Evandro. A solenidade seguiu o decoro ritual. Mas o sacerdote, no sermão que deveria honrar o morto, incensou o governo. O padre falou muito tempo das qualidades excelsas do ministro da Justiça, de corpo presente, e pouco se referiu a Evandro. Meus sentimentos passaram de indignação à vergonha alheia, à tristeza de constatar uma atitude comum na Igreja anterior ao Concílio Vaticano II, o elo indissolúvel entre trono e altar.
Consolei-me com a lembrança do espetáculo celeste: Evandro sendo recebido por Pedro, o primeiro papa, com a simplicidade dos justos que ignoram cortes e cortesanias. A lisonja é ignorada no céu. Ela domina o inferno.
A missa seguiu adiante e chegou a hora em que todos se ajoelham. No banco em frente ao meu estava Plínio de Arruda Sampaio. Espanto fulminante: ainda existia gente ética na vida política nacional! A prova? As solas dos sapatos de Plínio eram não apenas gastas, mas com evidente furo. Um homem que esteve nos mais elevados postos do governo, cuja presença foi estratégica na construção da ordem civil, vivia na humildade franciscana!
Comparados aos arrivistas de nossas instituições, os hábitos modestos de Plínio ressaltavam uma personalidade alegre, combativa, altaneira. Ele gastou as solas dos sapatos porque seguia ereto, sem rastejar como os realistas que infestaram os partidos por ele fundados e que depois abandonou, à cata de sonhos e realidades mais dignas.
Plínio não era um sectário das agremiações. Integrou partidos que prometiam a melhoria dos padrões políticos vigentes, mas os deixou quando eles se tornaram caricaturas de si mesmos. Sem intolerâncias ou alergia ao diálogo, ele soube manter a coerência, essencial no político prudente. Sua honestidade era um desafio perene aos companheiros que sucumbiram ao poder imediato. Assim, jamais caiu nas malhas do mercado político nem vendeu ideais como produtos de pacotilha.
Ele praticou, ao longo da vida, o que ensina Norberto Bobbio: “Num Estado democrático, a moralidade pública não é apenas obrigação moral ou jurídica, mas também uma obrigação política por excelência imposta pelo princípio que regula a vida do governo democrático, e que o distingue de toda outra forma de governo até hoje existente, o princípio do ‘poder público’” (L’Utopia Capovolta).
A crise dos Estados atuais manifesta-se sobretudo na falta de lideranças democráticas com sentido moral. Podem ser contados nos dedos os políticos, magistrados, parlamentares que merecem o título de estadista. Escasseiam pessoas como Evandro Lins e Silva e Plínio de Arruda Sampaio. A leniência diante da “privatização do público” (a expressão é de Bobbio) ainda causará muitos estragos nas instituições brasileiras. Quem viver verá.