Se os cientistas começam a negar a realidade, o que será dos pobres mortais que já desconfiam de sua existência?
Gosto muito de revistas. Mesmo atropeladas pela internet, não deixo de vê-las duas vezes por semana. Vou procurá-las nas bancas até o fim, caso exista mesmo um fim para esse artefato de papel que marcou minha vida, desde adolescente, quando esperava a chegada da revista “Senhor”, religiosamente, a cada mês. Nas bancas, tudo me interessa. Vejo quadrinhos porque gosto da composição audaciosa, da fluidez com que contam uma história visual.
E não consigo deixar de ler os diálogos como esse:
— Décadas atrás, tecnologia ciborgânica semelhante à sua insígnia de armas foi introduzida na minha raça para estimular nossa evolução.
Outro dia, vi à distância uma capa que diz: “A realidade não existe”. De longe, podia ser tudo: um texto religioso sobre o budismo, um perfil filosófico de Platão. Mas era uma revista científica. Se os cientistas começam a negar a realidade, o que será dos pobres mortais que já desconfiam de sua existência? Era meu dever comprar a revista para esclarecer minhas dúvidas. Nos textos internos o título abrandava a afirmação da capa: o que é o real?
Textos, editorais, entrevistas não me convenceram de que a realidade não existe. Mas não me deram nenhuma segurança se esse ônibus Usina-Leblon que vem em minha direção é uma perigosa montanha de ferro e lataria ou se é apenas resultado do meu olhar.
Compreendi, creio, as intenções dos redatores expressas logo nas primeiras linhas: o mundo existe somente quando o olhamos? Eles mostram como a ciência tem uma relação paradoxal com os fatos. Ela parte do estudo de uma realidade objetiva com a qual todos concordamos. Ao fazer isso, acaba concluindo que a essência das coisas desafia nossa experiência cotidiana.
Primeira conclusão: a realidade não está jamais onde o senso comum a espera. Quanto mais próximos dela pensamos estar, mais se distancia. Ela é um pouco como essas bonecas russas que sempre contêm uma outra.
Os cientistas simulam, modelizam esta realidade para melhor compreendê-la. É uma busca que exige não apenas ver mais longe, mas também superar nossas intuições e, em certos momentos, resistir a elas. Nesse ponto, anotei uma ressalva: confiar nas intuições tem um grande valor no autoconhecimento, eles não estavam falando de psicologia. Nossas intuições de nada valem diante da equação de Schrödinger, um dos fundamentos da mecânica quântica: uma partícula pode estar em vários lugares ao mesmo tempo. O problema, portanto, não é descrever sua trajetória, mas sua probabilidade de estar neste ou naquele lugar.
Pelo menos isso me ajudou a atravessar a rua diante do Usina-Leblon. Mas a provocação da revista não parava aí. Dizendo-se platônico, o matemático Marx Tegmark, afirmou que acreditava que o mundo real eram estruturas matemáticas:
— Pense no seu melhor amigo — diz o cientista. — E o que você ama nele, seu grande senso de humor, seu sorriso. Tudo isso pode ser traduzido em termos de interações complexas entre partículas, portanto descritíveis através de equações matemáticas.
Mark Tegmark admite, entretanto, que os grandes desafios para a ciência ainda estão na realidade psíquica e na consciência. Precisamos aproveitar este momento ainda imperfeito da ciência. Ainda podemos cantar: “A vizinha quando passa com seu vestido grená”. No futuro, uma fórmula matemática pode expressar este verso.
De todas as audácias que driblam nossa intuição, achei mais razoável a ideia de que não existe o universo, mas sim multiversos. O matemático justifica sua tese: não há nenhuma garantia de que o Big Bang tenha produzido apenas o universo. O nosso estaria apenas na região esférica do espaço que a luz teve tempo de atingir com o Big Bang, há cerca de 13 bilhões de anos.
A própria teoria da inflação que produziu o Big Bang sugere que ela não se deteve numa só explosão, mas produziu muitas outras. Finalmente, apareceu ao longo dos textos um jornalista para nos questionar mais diretamente: “Você já viu um elétron?” Ninguém jamais viu um elétron. As partículas elementares da matéria são caracterizadas pelos efeitos que produzem. Sabemos descrevê-los matematicamente, mas sua natureza íntima nos escapa.
De novo, o Usina-Leblon: a massa azulada se aproxima, vejo o rosto tenso do motorista, que não posso reduzir a uma fórmula matemática, mas conheço os efeitos que ele produz. Corro e tenho e a impressão de que o motorista me xingou. Compreendo sua raiva e a desculpo: ele pensa que existe, assim como existem essa massa compacta chamada ônibus e um maluco com revistas debaixo do braço cruzando seu caminho.
De realidade naquilo, só o número: 415.<EP,1>PS: Na coluna da semana passada, cometi um erro: onde escrevi mecânica russa, leia-se mecânica quântica