De costas para o poente, na sala que serve de espaço de recreação aos meninos de Fernanda Torres, está um velho piano. A atriz tomou aulas na infância e de vez em quando encara o instrumento. Mas não na presença de Joaquim, 14, e Antônio, 6. Seus filhos com o cineasta Andrucha Waddington são refratários, sabe-se lá se com razão, aos recitais da mãe.
O piano é uma relíquia da memorável montagem de 1959 de "O Mambembe", de Artur Azevedo (1855-1908), inaugurada com pompa no Municipal do Rio. O pai, Fernando Torres, produziu a peça, que consagrou e premiou a mãe, Fernanda Montenegro, no papel de Laudelina, a mocinha que sonha em tornar-se uma grande atriz.
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"Não tens o direito de não estar no teatro; cometes um estelionato, de que é vítima a arte", relata a extasiada Laudelina, sobre conversa que tivera com Frazão, ator renomado, após uma apresentação da trupe. Esse labiríntico jogo de espelhos, de uma jovem atriz ambiciosa que representa uma jovem atriz ambiciosa, parece ter rebatido premonitoriamente na face de Montenegro.
"Minha mãe é inteiramente realizada como atriz", diz a filha, que também é Fernanda e também pratica e domina, já há décadas, a arte de Dioniso. A frase de Fernandinha seria dispensável, pois poucos duvidam do colosso Fernandona, se não estivesse tão relacionada às inquietações atuais da filha.
Fernanda Torres quer dizer que não se orienta mais pela bússola da mãe, cujo norte sempre apontou para a realização profissional e intelectual em cena. A filha se desviou um pouco e agora sustenta uma pretensão paralela como escritora. Lançou em 2013 o romance "Fim" e prepara-se para publicar "Sete Anos" (ambos pela Companhia das Letras), uma seleta de suas colaborações como cronista e ensaísta para a Folha e as revistas "Veja Rio" e "piauí".
Aquele anseio pelo papel marcante da carreira, aquele desejo tão típico dos atores vocacionados de consagrar-se na pele de uma Fedra ou de um Hamlet inesquecíveis, Fernanda Torres diz ter perdido. "Eu tinha ambições como atriz, mas não tenho mais. Tenho ambições como artista."
Alguma coisa está acontecendo com essa Laudelina amadurecida. Alguma coisa que a própria Fernanda Torres não sabe aonde vai levar.
Levou-a a relembrar e a narrar, no texto mais longo que abre o livro de crônicas, as aventuras da locação, em 1989, do filme "Kuarup", de Ruy Guerra. Com 23 anos, Fernanda Torres viveu Francisca, a paixão adiada e arrebatadora de Padre Nando (Taumaturgo Ferreira), o protagonista do romance de Antônio Callado que seria convertido ao cinema.
A realidade tratou de frustrar as expectativas alimentadas pela atriz antes do embarque rumo ao Alto Xingu. Para quem sonhava com reviver a logística romântica de "Uma Aventura na África" -o filme de 1951 de John Huston, com Humphrey Bogart e Katherine Hepburn-, as barracas de náilon que violavam a harmonia da paisagem amazônica foram o primeiro de uma série de ruídos.
Os atores passariam semanas fruindo a dieta indígena à base de frutas e peixe? Nada disso. Voos regulares garantiriam o abastecimento do set com quilos e mais quilos de carne moída, arroz e feijão. Os índios também teimavam em não comportar-se como nativos.
Acorriam às filas do refeitório dos brancos. Suas lideranças negociaram mais compensações materiais e financeiras assim que viram desembarcar o copioso aparato técnico.
Misturados aos lances patéticos, aspectos do que o ensaísta palestino Edward Said (1935-2003) chamou de orientalismo, a tendência da literatura ocidental de decantar em exotismo e desrazão a experiência do contato com outros povos, aparecem no texto de Fernanda. A impaciência, o impulso sexual e rompantes de loucura e truculência afloram à medida que a estadia na selva se prolonga.
Algum descompensado acordou o acampamento de madrugada com os gritos de Mick Jagger em "Satisfaction", rodando num aparelho de som na altura de estourar os tímpanos. Loucura na selva? Rolling Stones na beira do rio? Ora, Fernanda, isso é "Apocalypse Now", o filme de 1979. É "Coração das Trevas", o conto de Joseph Conrad (1857-1924) que inspirou a versão cinematográfica de Francis Ford Coppola.
A escritora não concede à provocação da reportagem. Não se lembra dos acordes de Keith Richards a embalar uma das cenas em que Willard (Martin Sheen) e seus comandados sobem o rio Nung, com o objetivo de assassinar o ensandecido Coronel Kurtz (Marlon Brando) no Camboja, durante a Guerra do Vietnã.
TOTALMENTE NO SCHWARZ
Fernanda não pensou nisso ao narrar a locação no Xingu, mas tem refletido sobre algo aparentado, estimulada pela leitura da obra do crítico paulista Roberto Schwarz. A atriz escreveu a orelha da nova edição de "A Lata de Lixo da História" (Companhia das Letras), adaptação do "Alienista" de Machado de Assis para o teatro, composta por Schwarz quando fugia da repressão do AI-5, no final da década de 1960.
Roberto é um refinado discípulo de Antonio Candido, o decano no Brasil da moderna crítica literária com dicção sociológica e extração marxista. Em obras como "Ao Vencedor as Batatas" (1977) e "Um Mestre na Periferia do Capitalismo" (1990), Schwarz destila a sua leitura particular de Machado, como um ficcionista revelador e crítico do estado das relações sociais no Brasil da metade final do século 19.
Em clássicos como "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881), "Dom Casmurro" (1899) e no próprio "Alienista" (1882), o Machado de Schwarz também é um ácido comentarista das dificuldades e sinuosidades da modernização capitalista neste território excêntrico.
As forças das luzes e da razão que vêm da Europa e do norte da América aqui se misturam aos vetores do autoritarismo, do escravismo e do patrimonialismo. Misturam-se e transformam-se num composto gelatinoso, postiço, com efeitos cômicos e trágicos ao mesmo tempo. Fernanda Torres parece interessada em explorar e em desnovelar essa confusão civilizatória no seu trabalho daqui para a frente.
"Estou totalmente no Schwarz", diz ela. Ao intelectual da USP atribui a descoberta de que "o Favor e o Paternalismo são os esteios das relações sociais que me rodeiam". Projeta transformar o que está lendo do crítico paulista e do próprio Machado num material para teatro.
Algo para ser encenado à maneira da guerrilha teatral, com o ator solitário encarando o público e interagindo com ele. Fernanda acalenta uma encenação na linha do que faz Tim Crouch, o ator vanguardista baseado em Brighton, no litoral britânico. Crouch esteve em Paraty no último festival literário, a Flip, e ali encantou a atriz carioca.
Se depender da reação inicial de Roberto Schwarz, Fernanda pode ir em frente. O professor e crítico se diz lisonjeado com a notícia. A ideia de sugerir a seu editor que convidasse a atriz para escrever a orelha de "A Lata de Lixo" surgiu após a leitura de "Fim". "Gostei muito do romance, especialmente da prosa notável, viva, enxuta. Tudo na mosca. [Fernanda Torres] Conhece a voz da personagem", afirma Schwarz.
SÉCULO 20
Talvez a romancista Fernanda já tenha se exercitado um pouco no universo machadiano. O ambiente saturado de experiência urbana do Rio de Janeiro e a elite da zona sul da cidade são elementos do romance "Fim", que conta as histórias de cinco amigos, nascidos na primeira metade do século 20, cujas vidas marcham melancolicamente para o desfecho a partir dos anos 1990.
O atlético e esbelto Escobar e o seu amigo desconfiado Bento, de "Dom Casmurro", o Rubião que tem a lucidez destroçada em "Quincas Borba" (1891) e o afetado Conselheiro Aires do "Memorial" (1908) e de "Esaú e Jacó" (1904), sem contar o concupiscente Brás Cubas, são personagens tão ordinários, masculinos, bem postos e ociosos quanto o quinteto de "Fim". Cada um vive a sua desventura, a sua tragédia da vida privada.
A carreira de Fernanda Torres
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Na série cômica "Tapas e Beijos" (2011 - ) Fernanda Torres vive Fátima
Os senhores de Fernanda Torres que caminham desnorteados para a morte simbolizam, nas palavras da autora, "a tragédia do hedonismo carioca". Todos são filhos da revolução dos costumes que arrebatou a capital a partir dos anos 1950. Foram atingidos e moldados pela liberação sexual, pela circulação ampliada das drogas, pelo culto do corpo e pela ruptura da sagrada aliança conjugal.
O choque de ter trocado ainda na infância uma vida mais pacata numa casa da rua Paulistânia, na zona oeste de São Paulo, pela frenética Ipanema, no Rio dos anos 1970, deu a Fernanda elementos para compor personagens e situações de "Fim".
"Meus pais sempre foram caretas", diz a atriz, mencionando a origem suburbana de boa parte de sua família. Ela se lembra do contraste de passar de repente a conviver com amigos cujos pais eram separados. Terá se vingado dos avançadinhos em seu romance, decretando para eles um final de vida banal e sem sentido?
Pode ser, mas o ritmo lúgubre do desenrolar de "Fim" e de algumas crônicas de Fernanda não responde apenas ao desejo de desforra. "Aos 40 [ela completa 49 no próximo dia 15], você começa a sacar que a vida acaba. Há uma grande melancolia nisso." Surgem as memórias do pai, Fernando Torres, morto em setembro de 2008, mais de 20 anos após ter sofrido sua primeira isquemia.
FILHA DO PAI
O único texto inédito de "Sete Anos" é o relato do dia da morte de Fernando, em casa. A filha escreve nove dias depois e menciona as "lembranças de infância embaralhadas na cabeça: Veneza, Itaipu". Para Itaipu o pai a levava em fins de semana. Enquanto ele pescava num bote, Fernanda e uma prima mergulhavam no lago da hidrelétrica.
Da viagem a Veneza, em 1974, Fernanda se lembra de ter vivido "um caso de amor com meu pai", de ter-se sentido a própria Julieta debruçada numa janela medieval italiana, contemplando lá embaixo o seu Romeu, o seu pai, o aventureiro cosmopolita e burguês da família.
"Eu sou burguesa como o meu pai e me identifico menos com o estoicismo operário de minha mãe", afirma, para justificar uma vez mais, e agora no confronto com o par de personalidades que compõem o seu nome e boa parte de sua singularidade profissional, o desejo de voar para outros territórios artísticos.
As viagens literárias mais recentes e a longa carreira nos palcos e na TV de Fernanda Torres afinal se encontram. Com a Fátima, da série semanal "Tapas & Beijos" (TV Globo), que está na quarta e última temporada, ela afirma viver um novo aprendizado, uma reentrada discreta no melodrama televisivo, depois de um dilatado período sem fazer novela.
"Fátima é capaz de se imolar por aquele homem [Armane, personagem de Vladimir Brichta], o seu macho alfa." Foi-se o tempo da destampada Vani, de "Os Normais" (2001-2003), de traços caricaturais e quase automáticos.
Fátima não faz tudo o que quer. Faz tudo o que for preciso para ficar com Armane. Submete-se ao seu destino assim como Fernanda Torres, a atriz e a escritora, está cada vez mais submetida ao texto.
Pertencente a uma geração marcada pelo improviso em cena, ela agora se converte à disciplina da palavra escrita. "O texto é a partitura do ator. É como tocar Mozart ou Beethoven, tudo está ali naquela partitura."
Então toque, Fernanda.