O Estado de São Paulo
Certa percepção de senso comum, não por acaso dotada de considerável grau de moralismo, considera a política ideológica como superior à pragmática - especialmente sob o aspecto moral. Supõe que enquanto a ideologia se orienta por visões de mundo e concepções impessoais sobre o que é ou não correto, o pragmatismo decorre de interesses imediatos e estreitos, não raro mesquinhos, cujo atendimento requer o desprezo às convicções. Dessa perspectiva (que situa a política ideológica como moralmente superior à pragmática) advêm os reclamos por partidos mais ideológicos em vez de fisiológicos e pela discussão de ideias em substituição à crua barganha de interesses.
Todavia, para além de sua importância nessa perspectiva moralista, a ideologia pode ter uma função prática: oferecer atalhos cognitivos para a tomada de decisões. Assim, diante de um cenário confuso e de informações parcas ou conflitantes, o indivíduo pode decidir mais facilmente quando amparado por convicções ideológicas.
Imaginemos um eleitor cujas preferências ideológicas prévias apontem num certo sentido do espectro esquerda-direita, mas que fica em dúvida diante de plataformas eleitorais muito complexas, que lhe deixam perturbadoramente indiferente. Por exemplo, o candidato A lhe apetece quanto à política econômica; o candidato B, no que diz respeito à política social; e o candidato C, no que concerne ao modo de fazer política. Porém, se um candidato lhe agrada num ponto, incomoda-lhe nos demais, deixando-lhe indeciso sobre em quem votar. De que forma escolher? Diante do impasse, pode considerar seu posicionamento ideológico mais geral e identificar qual a alternativa que mais se aproxima da sua. Paradoxalmente, a ideologia lhe forneceu uma solução pragmática.
Por outro lado, a ideologia também pode dificultar as melhores escolhas. Um indivíduo aferrado a convicções tende a ser alguém difícil de persuadir, mesmo com os melhores argumentos e os dados mais evidentes. Recordo-me de episódio envolvendo um ex-colega de trabalho. Diante do desacordo para resolver satisfatoriamente uma situação com vários envolvidos, apontaram-lhe a necessidade de considerar que enfrentávamos um problema de escassez. Sua resposta foi: "Não aceito argumentos baseados na escassez!". Nota-se que a ideologia mostrou-se fonte não só de irrealismo, mas de uma irracional intransigência.
Indivíduos muito ideológicos são também pouco tolerantes à divergência de opinião. Nota-se isso em indivíduos que já têm todas as respostas, antes mesmo das perguntas, como certos comentadores de textos na internet. Ao não identificarem no texto posição ideológica equivalente à sua, passam a desqualificar e atacar o autor, sem considerar que pessoas igualmente capazes e intelectualmente honestas podem simplesmente discordar. Neste caso, a ideologia, em vez de fornecer um atalho cognitivo, embota a cognição e revela ignorância - senão estupidez.
Diante do risco da irracionalidade, da intolerância e da estupidez causadas pelo excesso ideológico, o pragmatismo se mostra não apenas uma solução superior em termos práticos, mas também morais. Ou estaria errado o eleitor que, em vez de se orientar por normas abstratas e vagas (supostamente correspondentes ao "certo"), segue caminhos que pura e simplesmente possibilitam a satisfação de seus interesses mais comezinhos? O que é moralmente mais adequado: defender belos princípios, mesmo que impraticáveis, ou conceder nos princípios para obter resultados práticos? Essa é uma escolha com que se defrontam não apenas os eleitores, mas sobretudo os políticos, ao decidir sobre políticas públicas, sobre formas de negociação e sobre quem onerar ou beneficiar. Um pragmatismo politicamente responsável importa-se menos com o doce capricho dos gostos prévios do que com as duras consequências dos atos.