sábado, 30 de agosto de 2014

A magia ao luar é o enigma do amor. Ou: O intelectualismo como fuga da vida

Blog Rodrigo Constantino - Veja


magia ao luar
Assisti nesta sexta a “Magia ao luar”, novo filme de Woody Allen. Trata-se de um legítimo Woody Allen! Há quem não goste do estilo, mas, fazer o quê? Gosto não se discute; lamenta-se. Para mim, Allen é um dos maiores diretores existentes, e seus filmes são deliciosos. Essa é a palavra.
É um deleite acompanhar seu ritmo, a escolha das imagens e do visual, sua trilha sonora (que está magnífica neste filme), seus diálogos inteligentes e, claro, o humor “involuntário” de seus personagens autobiográficos. Nesse caso na atuação brilhante de Colin Firth, que incorpora como poucos o perfil de neurótico obsessivo racionalista e, portanto, pessimista e “sem humor” do próprio Allen.
Não pedimos para nascer, nada fizemos de errado, e já viemos ao mundo condenados à morte! Essa “sentença” captura com perfeição a visão de mundo racionalista de um típico obsessivo. Mas será que não há nada além do que nossa vista alcança mesmo? Será que os céticos infelizes é que estão certos, afinal? Estamos condenados à maldição de Sísifo e nada mais?
Difícil falar do filme sem “spoilers”. É preciso ver. Eis a curta sinopse oficial: Stanley (Colin Firth), um falso mágico com talento para desmascarar charlatões, é contratado para acabar com a suposta farsa de Sophie (Emma Stone), simpática jovem que afirma ser médium. Inicialmente cético, ele aos poucos começa a duvidar de suas certezas e se vê cada vez mais encantado pela moça.
Os diálogos do filme parecem reflexões pessoais do próprio Woody Allen, também ele um ateu convicto. Qual o sentido nisso tudo? Na vida? Talvez seja relativamente fácil destruir todas as ilusões. O “martelo” de Nietzsche fez bem esse papel. A questão que surge é: o que colocar em seu lugar? Apenas o niilismo? Nem Allen suportaria, e a sublimação pela arte – arte obsessiva, com sua indelével impressão digital – é sua resposta.
Lembro-me de um colóquio que participei há muitos anos, em minha fase mais “objetivista” de seguidor fiel de Ayn Rand, em que uma senhora perguntou, no intervalo, se eu realmente acreditava que até a “escolha” do amor era tão racional assim, um cálculo objetivo de prós e contras, de qualidades e defeitos. Fiquem encasquetado, confesso.
No filme “Quero ficar com Polly” (2004), com Ben Stiller e Jannifer Aniston, há uma cena que retrata o absurdo dessa postura. O personagem de Stiller começa a introduzir inputs em sua planilha, ele sendo um avaliador de riscos para seguros, de modo a confirmar com quem ele deveria ficar. Ele já sabia a resposta. E ela não era tão racional assim. Não era fruto de um cálculo milimétrico de vantagens e desvantagens, o que seria muito frio, sem graça.
Felizmente, há alguma magia na vida, algo que nos escapa, que foge à razão. Existe um enigma que não pode ser respondido, mesmo pelos mais céticos e racionais. O filme novo de Woody Allen é uma homenagem a isso, a essa pitada de sal maravilhosa em nossas vidas “sem sentido”. O cético racional pode até desmascarar um embuste, mas não pode evitar cair no feitiço do amor.
O que me remeteu a um texto que escrevi com base em um dos melhores livros de Aldous Huxley, escrito coincidentemente na época em que o filme de Allen se passa, os anos 1920. Para ser mais preciso, no exato ano: 1928. Segue:
O intelectualismo como fuga da vida
“Refreia as tuas paixões, mas toma cuidado para não dar rédeas soltas à tua razão.”  (Karl Kraus)
O homem mesmo se denominou homo sapiens, de forma um tanto arrogante. Sim, está claro que somente os humanos desfrutam da potente capacidade racional da mente, por meio de sua autoconsciência e raciocínio lógico-dedutivo. E que ferramenta fantástica! A razão é sem dúvida aquilo que mais nos diferencia dos demais animais. Mas, e quanto aquilo que nos aproxima deles? Por que evitar ou jogar no lixo? Por que achar que são menos humanos os “instintos” animais responsáveis por nossas paixões? Será que faz sentido cortar o homem em duas partes, mente e corpo, e ainda por cima alçar uma ao pedestal de deusa, atirando a outra no fogo?
Em seu magnífico livro Contraponto, Aldous Huxley fala, por meio do personagem Rampion, sobre esse assunto, de forma bastante apaixonada – como não poderia deixar de ser. Para Rampion, a “alma consciente quer mal às atividades da parte inconsciente, física e instintiva do ser total”. Ele continua: “A vida de uma é a morte de outra e vice-versa. Mas o homem são de espírito pelo menos procura guardar o equilíbrio. Os cristãos, que não eram sãos de espírito, disseram às gentes que elas deviam lançar uma metade de si mesmas na lata do lixo. E agora os cientistas e os homens de negócio vieram para nos dizer que devemos jogar fora a metade que os cristãos nos deixaram. Prefiro ficar vivo, inteiramente vivo. É tempo de fazer uma revolta a favor da vida e da plenitude”.
Escrito em 1928, o livro captura bem a essência das diferenças entre a vida de um Rampion e de um típico “intelectual puro”, Philip Quarles. O interessante é que o próprio Quarles tinha noção disso, e relata em seu caderno de notas: “A companhia de Rampion me deprime um pouco; porque ele me faz ver quão grande é o abismo cavado entre o conhecimento da evidência e o simples fato de vivê-la realmente. Ah! Que dificuldades há para transpor esse abismo! Percebo agora que o verdadeiro encanto da vida intelectual – da vida consagrada à erudição, à pesquisa científica, à filosofia, à estética, à crítica – é a sua facilidade. É a substituição de simples esquemas intelectuais em lugar das complicações da realidade; da morte silenciosa e rígida em lugar dos movimentos desconcertantes da vida”.
Quarles descobre então que o “intelectualismo” não passa de uma fuga também, como tantas outras que os homens inventam para o desespero de uma vida sem muito sentido lógico: “A corrida para os livros e para as universidades lembra a corrida para as tavernas. Essa gente necessita afogar a consciência das dificuldades que há em viver decentemente neste grotesco mundo contemporâneo; têm necessidade de esquecer a sua deplorável insuficiência como cultivadores da arte de viver. Uns afogam suas tristezas no álcool, mas outros, ainda mais numerosos, as afogam nos livros e no diletantismo artístico; uns procuram achar o esquecimento de si mesmos na libertinagem, na dança, no cinema, no rádio; outros nas conferências e nas ocupações científicas”. Ele passa a ver a “procura pela verdade” não mais como a tarefa nobre dos homens, mas simplesmente como um “divertimento, uma distração como todas as outras”.
As revelações pessoais vão além na mente de Quarles: “Percebi igualmente que a busca da verdade não passa de um nome polido para designar o passatempo favorito dos intelectuais, que consiste em substituir por abstrações simples, e por conseguinte falsas, as complexidades vivas da realidade”. E, para concluir sua descoberta, faz uma pergunta retórica, cuja resposta ele já sabe antes: “Terei algum dia bastante força de espírito para me livrar desses hábitos indolentes de intelectualismo e para consagrar minha energia à tarefa mais séria e mais difícil de viver integralmente?”
O personagem de Philip Quarles era desapegado de fortes emoções, um novelista frio, que analisava o mundo de forma sempre impessoal e abstrata, para o desespero de sua esposa, que desejava ardentemente uma prova de vida, de paixão do seu marido (ainda que fosse com outra!). Entretanto, o curioso era sua própria consciência disso tudo, inclusive da demanda de sua mulher, que ele não conseguia atender, sabendo da artificialidade que seria seu ato “apaixonado” consciente. Em suas reflexões, ele mesmo escreve: “Por esta supressão das relações emotivas e da piedade natural, parece-lhe (ao intelectualista) ter atingido a liberdade – a liberdade com relação à sentimentalidade, ao irracional, à paixão, ao impulso, à emotividade”. E dispara: “Sua razão permaneceu livre – mas para se ocupar somente com uma pequena fração dos fatos da experiência”. Essa vida simplesmente intelectual era mais fácil, pois evita os outros seres humanos.
Rampion, que não tinha papas na língua, jogava a realidade crua com violência na cara do amigo: “Nossa verdade, a verdade humana que nos interessa, é uma coisa que se descobre vivendo, vivendo completamente, com a totalidade do nosso ser. Os resultados dos divertimentos de vocês, Philip, todas essas famosas teorias sobre o cosmo e todas as suas aplicações práticas não têm absolutamente nada que ver com a única verdade que nos importa. E a verdade inumana não é meramente alheia a nós; é perigosa. Ela distrai a atenção de cada um da importante verdade humana. Ela os faz falsificar a sua própria experiência, a fim de que a realidade vivida possa ajustar-se à teoria abstrata”.
Na tentativa de criar algo mais que humano, acabamos menos que humanos, era a conclusão de Rampion. A cabeça até pode voar pelas nuvens, com a condição dos pés ficarem firmes no chão. É quando as pessoas se empenham em voar o tempo todo que vem a destruição. “Têm a ambição de ser anjos; mas o mais que conseguem ser são cucos e gansos, por um lado, ou então abutres repugnantes e corvos carniceiros, por outro”. Para Rampion, o homem não é anjo nem diabo, mas homem, um ser que “anda sobre uma corda esticada, que caminha sobre ela delicada, equilibradamente, tendo, numa das extremidades da vara que lhe dá estabilidade, o espírito, a consciência, a alma, e na outra extremidade o instinto e tudo o que é inconsciente, tudo o que é terreno e misterioso”.
Do ponto de vista puramente lógico, isso pode ser um contra-senso. Mas para Rampion, eis justamente o ponto fundamental: “a lógica é um simples contra-senso também à luz da verdade viva”. Para ele, pode-se escolher a que se quiser – a lógica ou a vida. “É questão de gosto. Algumas pessoas preferem ser cadáveres”. Entre bestas e anjos, o segredo estaria em buscar o equilíbrio. O intelectualismo puro seria apenas mais uma forma de fuga da vida humana.