quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Maduro começa a perder apoio entre os mais pobres

Manifestante segura um cartaz em frente a policiais da guarda nacional em frente a embaixada de Cuba em Caracas, na Venezuela - 25/02/2014Manifestante segura um cartaz em frente a policiais da guarda nacional em frente a embaixada de Cuba em Caracas, na Venezuela - 25/02/2014 - Jorge Silva/Reuters

Com crise institucional e econômica no país, a parcela da população mais fiel ao chavismo se cansou. Protestos antigoverno já agitam bairros pobres e favelas

Diego Braga Norte, de Caracas - Veja
 
 
O presidente venezuelano Nicolás Maduro
Protestos contra o presidente venezuelano chegaram às periferias (Jorge Silva/Reuters)
O futuro político do presidente venezuelano Nicolás Maduro é uma incógnita. Se depender do seu presente, no entanto, ele não vai muito longe. Após treze dias de protestos ininterruptos nas ruas de Caracas e de outras cidades, as manifestações já saíram do controle, aparecendo e se dispersando de forma espontânea por todo o país. E engana-se quem pensa que os protestos estão concentrados apenas em bairros de classe média. Eles também chegaram às periferias. A população mais carente não aguenta mais o desabastecimento que toma conta do país, a inflação superior a 56% ao ano que consome seus parcos rendimentos e a violência altíssima – em 2013, Venezuela registrou mais de 24.000 homicídios, segundo a ONG Observatório Venezuelano da Violência (OVV). O combalido Iraque, no mesmo período, teve cerca de 9.000 mortes violentas.

Hoje na Venezuela – como acontece praticamente em todos os países em crise – as coisas não são tão simples quanto aparentam. Nem todos os pobres são governistas, aqui chamados de ‘oficialistas’, e nem todas as pessoas de classe média ou ricas são opositoras. O espectro ideológico da população tem diversas nuances e não é definido apenas pela classe social. "As populações mais pobres apoiavam Chávez porque de alguma maneira se sentiam protegidas. À época do Chávez, o governo ainda tinha dinheiro para investir em políticas sociais. Começaram a chegar médicos e professores nas favelas. Agora, além de não ter mais isso, começa a faltar comida", diz José Carrasquero, professor de ciência política das Universidades Católica e Simón Bolívar.

Se os meios de comunicação oficiais escondem as manifestações e insistem na teoria de golpe de Estado coordenado por fascistas, as mídias sociais não os deixam mentir: há registros de protestos em favelas, chamadas pelos venezuelanos de "barrios". Há fotos e relatos de manifestações em Santa Fé, Las Minas de Baruta e em outras periferias de Caracas. Fontes de dentro do governo – que pediram para permanecer anônimas – confirmaram à BBC que Miraflores se preocupa com a ocorrência de protestos em áreas consideradas como bastiões do chavismo, como em El Valle ou Petare – esta última, uma das maiores favelas da América Latina, com mais de 1 milhão de moradores. "O mais curioso é que essa população não culpa o processo político e continua sendo chavista. Eles culpam diretamente o Maduro", diz o analista. "A imagem de Maduro entre algumas pessoas mais humildes teve uma deterioração importante e, especulo eu, irreversível", continua.

Crise institucional – A inaptidão – ou a má-fé – da administração Maduro é tamanha que acaba afetando o funcionamento dos outros dois poderes. No Judiciário, das 32 cadeiras para juízes do Tribunal Superior de Justiça – a corte máxima do país – dez estão vagas por causa de aposentadorias. Com uma bancada atual compondo uma maioria favorável ao seu governo, Maduro não se mexe para nomear outros nomes que possam lhe causar problemas. O cargo de Controlador Geral da República – equivalente ao nosso Procurador-geral da União – está vago desde 20 de junho de 2011, quando o então ocupante titular, Clodosbaldo Russián, faleceu. Desde então o cargo fiscalizador mais importante da Venezuela, que deveria ser totalmente independente do Executivo, está nas mãos de uma suplente temporária, Adelina González, figura próxima a Maduro, que não cria problemas para seu governo.

O Legislativo trabalha como um apêndice do Executivo, totalmente desnecessário depois da aprovação, em novembro, da Lei Habilitante. Os quatro artigos que deveriam ser usados apenas em condições de excepcionalidade, como durante uma guerra, por exemplo, estabelecem que o presidente pode editar decretos-lei em áreas onde tradicionalmente caberia à Assembleia.  E para conseguir esse cheque em branco, a lei que lhe confere superpoderes só foi aprovada depois da expulsão da deputada opositora María Aranguren, cassada por acusações até agora não provadas de peculato e conspiração. Como seu suplente votou com o governo, a lei foi aprovada por 99 contra 60, na conta exata dos votos necessários.

Futuro de Maduro – Dificilmente Maduro vai pedir renúncia. Tampouco é provável que o Congresso controlado pelos governistas aprove um referendo para o povo decidir o futuro do presidente. Se a força das ruas ainda não é suficiente para fazer o governo sair da inanição, alguns políticos governistas já começam a demonstram insatisfação pública. No caso mais emblemático, o governador do estado de Táchira, José Gregorio Vielma Mora, tornou-se uma voz crítica dentro do partido governista PSUV. "Eu sou contra acabar com um protesto pacífico usando armas", disse o governador a uma rádio de Caracas. "Ninguém está autorizado a usar a violência", completou.

Localizado nos Andes venezuelanos, no noroeste do país, Táchira foi o berço das manifestações. Após um caso de estupro dentro de uma universidade, estudantes protestaram contra a violência e oito deles foram presos e confinados em prisões de segurança máxima, sem acusação formal. A prisão arbitrária foi o estopim para novos protestos estudantis que tomaram conta do país a partir do último dia 12 de fevereiro – Dia da Juventude na Venezuela.

"Vielma Mora é ex-militar respeitado nas casernas e esteve envolvido na tentativa do golpe de 4 de fevereiro de 1992, ao lado de Chávez [quando militares tentaram tomar o poder na Venezuela]. Ele se considera uma das pessoas que originaram esse processo político que vigora hoje. Seu descontentamento é muito significativo e imprevisível”, afirma Carrasquero. Assim como é imprevisível o futuro da Venezuela.


Desabastecimento: as estratégias dos venezuelanos

O jornal venezuelano El Mundo elencou as formas que os cidadãos encontraram para tentar comprar ao menos itens básicos que desapareceram das prateleiras dos supermercados


Montar guarda dentro ou fora das lojas

Os venezuelanos fazem rondas na porta dos estabelecimentos comerciais para aguardar a chegada do caminhão que abastece o local com produtos alimentícios e de primeira necessidade. Há aqueles que até compram um café e leem um jornal enquanto conversam com os outros “caçadores” de produtos.
 

Enviar 'espiões' ao supermercado

A escassez fez com que muitos funcionários de empresas passassem a desempenhar uma nova função. Eles são enviados de tempos em tempos ao supermercado mais próximo do escritório para verificar os produtos que chegam. Quando a informação é repassada aos colegas, a equipe se divide para ir em turnos ao supermercado para fazer comprar. A ajuda inclui até a reserva de lugar nas filas.

Ficar amigo de caixas e empacotadores

Os funcionários dos supermercados são uma excelente fonte de informação sobre a chegada de produtos. Há quem dê presentes para os funcionários em troca dos avisos.

Fazer compras em grupo

Formar um grupo de três ou quatro pessoas para visitar diferentes supermercados simultaneamente virou alto comum entre os venezuelanos. Assim, cada grupo informa o outro sobre a condição do estabelecimento no qual está. A partir dai, ou todos vão à loja que tenha as prateleiras mais abastecidas ou uns compram os produtos que interessam aos outros grupos.

Levar a família às compras

A compra em família permite que alguém fique na fila do caixa enquanto outro vai para a fila da carne, ou para a do leite, ou a da farinha. Desta forma é possível conseguir acesso a mais produtos racionados.

Venezuela: a herança maldita de Chávez

Hugo Chávez chegou ao poder na Venezuela em fevereiro de 1999 e, ao longo de catorze anos, criou gigantescos desequilíbrios econômicos, acabou com a independência das instituições e deixou um legado problemático para seu sucessor, Nicolás Maduro. Confira:
 

Criminalidade alta

A criminalidade disparou na Venezuela ao longo dos 14 anos de governo Chávez. Em 1999, quando se elegeu, o país registrava cerca de 6 000 mortes por ano, a uma taxa de 25 por 100 000 habitantes, maior que a do Iraque e semelhante à do Brasil, que já é considerada elevada. Segundo a ONG Observatório Venezuelano de Violência (OVV), em 2011, foram cometidos 20 000 assassinatos do país, em um índice de 67 homicídios por 100.000 habitantes. Em 2013, foram mortas na Venezuela quase 25 000 pessoas, cinco vezes mais do que em 1998, quando Hugo Chávez foi eleito.

Apesar de rica em petróleo, a Venezuela é o país com a terceira maior taxa de homicídios do mundo, atrás de Honduras e El Salvador. Entre as razões para tanto está a baixa proporção de criminosos presos. Enquanto no Brasil a média é de 274 presos para cada 100 000 habitantes, na Venezuela o índice está em 161. De acordo com uma ONG que promove os direitos humanos na Venezuela, a Cofavic, em 96% dos casos de homicídio os responsáveis pelos crimes não são condenados.

Inflação galopante

A economia venezuelana tem um histórico de inflação alta, desde antes de Chávez chegar ao poder. Contudo, a gastança pública aliada a uma política expansionista e estatizante fez com que a alta dos preços atingisse níveis absurdos. Segundo o FMI, a inflação anual venezuelana fechou 2012 a 26,3%. Em 2013, o índice fechou em 56%, a mais alta taxa do continente americano e mais do que o dobro da registrada no país no ano anterior. Os números poderiam ser muito piores se não fosse o controle de preços exercido pelo governo. No entanto, essa regulação afetou a produção e levou a escassez de alimentos básicos como leite, carne e até papel higiênico. A desvalorização de mais de 30% da moeda, que entrou em vigor em fevereiro, fez com que alguns preços duplicassem.

Desmonte das instituições

Em 1999, Chávez aprovou uma nova Constituição que eliminou o Senado e estendeu seu mandato para seis anos, além de conseguir uma lei que lhe permitia governar por decreto. A concentração de poderes promovida pelo caudilho, no entanto, não se restringiu ao Legislativo. O Judiciário foi tomado por juízes alinhados ao chavismo. A cúpula das Forças Armadas também demonstrou lealdade ao coronel logo depois de anunciada sua morte, quando as tropas foram colocadas nas ruas com o objetivo declarado de "manter a ordem". "Vida longa, Chávez. Vida longa, revolução", bradou o ministro da Defesa, Diego Alfredo Molero Bellavia. A oposição em várias oportunidades pediu a obediência à Constituição.

A imprensa também não escapou do controle imposto por Chávez. Em 2007, o governo não renovou a concessão do maior canal de televisão venezuelano, a RCTV. A Globovisión, única emissora que ainda mantinha uma linha crítica ao governo, também foi vendida.

PDVSA em ruínas

O petróleo, extraído quase inteiramente pela PDVSA, a Petrobras da Venezuela, é responsável por 50% das receitas do governo venezuelano. Além do prejuízo de uma economia não diversificada, Chávez demitiu em 2003 40% dos funcionários da companhia após uma greve geral e os substituiu por aliados. A partir daí, as metas de investimento não foram cumpridas e a produção estagnou.

O plano de investimentos da PDVSA divulgado em 2007 previa a produção de 6 milhões de barris por dia este ano, mas entrega menos da metade. A exploração de petróleo caiu de 3,2 milhões de barris diários (em 1998) para 2,4 milhões (dado de 2012). O caudilho foi beneficiado, no entanto, pelo aumento do preço do produto e usou a fortuna para financiar programas assistencialistas e comprar aliados na América Latina.

O presidente Nicolás Maduro deu continuidade às 'misiones', como são conhecidos os programas assistencialistas. O desafio será mantê-los e ainda investir na petrolífera e aumentar a produção.

Crise elétrica

Entre o final de 2009 e início de 2010, a Venezuela sofreu uma crise no setor elétrico, agravada pela estiagem que reduziu drasticamente os níveis dos rios que alimentam as hidrelétricas. Preocupado em ajudar financeiramente os aliados latino-americanos, o governo Chávez deixou de investir em novas usinas. E as companhias do setor elétrico, sob a praga da gestão chavista, tiveram queda na produção por falta de manutenção, corrupção e aumento escandaloso do número de funcionários. A crise foi tão grave que paralisou vários setores da economia e obrigou o governo a declarar estado de emergência no país.

Para contornar a situação, Chávez propôs o "banho socialista" de três minutos, pediu para os venezuelanos usarem lanternas para ir ao banheiro no meio da madrugada e exortou as grandes empresas a gerar sua própria eletricidade. Em 2012, Chávez reconheceu que a Venezuela ainda sofria com problemas elétricos, mas disse que, se não tivesse chegado ao poder em 1999, o país se iluminaria com lanternas e cozinharia com lenha.
O fato é que ainda hoje apagões são registrados em todo o país. O discurso de Nicolás Maduro agora é colocar a culpa nos "inimigos da pátria", que estariam sabotando o sistema de energia.

Exportação do bolivarianismo

Boa parte dos recursos do petróleo venezuelano foi usada por Chávez para comprar aliados na região e ampliar o alcance de sua 'revolução bolivariana'. O maior beneficiário é Cuba, cuja mesada vinda dos cofres venezuelanos equivale a 22% do PIB - a ilha foi o destino do coronel ao longo de todo o tratamento contra o câncer e a oposição venezuelana denuncia a interferência dos irmãos Castro na política do país. Chávez também abasteceu o caixa de campanha de candidatos presidenciais populistas na América Latina e Central, como Cristina Kirchner, na Argentina, Evo Morales, na Bolívia, e  Daniel Ortega, na Nicarágua.

Endividamento estatal

Durante a era Chávez, o endividamento do governo subiu de 37% para 51% do PIB. A dívida pública externa oficial está em 107 bilhões de dólares, sem contar a dívida da PDVSA com fornecedores e sócios e os débitos do governo com empresas expropriadas. No total, a conta deve chegar a 140 bilhões de dólares, um grande desafio para o novo presidente.