O Globo
Brasileira como a jabuticaba, a impunidade naturalizada no andar de cima da nossa sociedade sofreu duplo revés num único dia desta semana — viva! Um punhado de bem-nascidos levou, em dois processos diferentes, uma tunda dos tribunais, algo vergonhosamente bissexto aqui sob o sol. Nestes dias tão carentes de esperança, serve de alento.
Terça, o estuprador Roger Abdelmassih foi preso pela Polícia Federal em Assunção, no Paraguai, destino frequente de bandidos pés de chinelo. Na sua encarnação como médico de bacanas, ganhou fama e prestígio pela especialização em reprodução humana — até ser acusado de ter cometido 56 estupros por suas clientes-vítimas.
No mesmo dia, a 2ª Câmara Cível do Rio ratificou a sentença que obriga cinco marginais endinheirados, moradores de condomínios na Barra da Tijuca, a pagar R$ 500 mil de indenização à empregada doméstica Sirlei Dias de Carvalho. Numa noite do inverno de 2007, a brasileira estava à espera do ônibus que a levaria de volta para casa após um dia de trabalho, quando foi espancada por quatro integrantes do grupo — o quinto bandido ficou ao volante, pronto para a fuga.
Indesculpáveis sete anos depois, vai custar R$ 100 mil por covarde. Está de graça, pela brutalidade em si e pela alegação dos bárbaros: eles teriam confundido a moça com uma prostituta — decretando, em sua lei particular, que seria motivo para a sentença do espancamento. Os malfeitores contaram com a bênção de pelo menos um dos pais, Ludovico Arruda, que teve a coragem de defender Rubens, seu filho de 19 anos, então estudante de Direito, com discurso chocante:
— Sirlei é mais frágil por ser mulher, fica roxa com apenas uma encostada.
Quando os agressores foram engaiolados provisoriamente, o pai ainda se entendeu no direito de um protesto constrangedor:
— Eles não são bandidos. Prender, botar preso, juntar eles com outros bandidos... Essas pessoas que têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses? Existem crimes piores.
Poucas falas podem ser mais brasileiras. Os jovens decidem voluntariamente cercar uma mulher sozinha e bater nela até quando estivessem com vontade — mas daí a ser bandido... E o desalentador é constatar que numerosa parcela de nossa população pensa de maneira semelhante. A cadeia serve para trancar pobres e pretos (com o devido perdão à redundância) que saem da linha. Jamais a turma detentora do direito divino a três refeições por dia desde Cabral — o Pedro Álvares.
Na longa odisseia judicial, um dos agressores, Júlio Junqueira Ferreira, 29 anos, dobrou a aposta na vida de crimes. No início de julho, desembarcou no presídio Ari Franco (porta de entrada de marginais no sistema penal), após ser pego em flagrante delito pela Polícia Federal com um quilo de haxixe dentro de um livro, enviado pelo correio de Foz do Iguaçu a seu endereço. O espancador de mulher variou de ramo, para se consolidar bandido.
Do outro lado da Ponte Aérea, no dia seguinte à sentença que favoreceu a doméstica, Abdelmassih adentrou a penitenciária de Tremembé, vindo da capital paraguaia. No exterior, vivia numa casa cheia de confortos com a mulher (você não leu errado — alguém casou com essa criatura) e dois filhos gêmeos, servidos de babás, seguranças e motorista, entre outros mimos. O cenário de comercial de margarina tinha a proteção do nome falso, Ricardo Galeano, adotado pelo estuprador. Como bandalheira pouca é bobagem, o doutor deixou a casa com o aluguel por pagar (a mulher e os filhos seguem lá).
Em tumultadas declarações a caminho do xilindró, na noite desta quarta, o homem condenado a 278 anos de cárcere, por 48 ataques a 37 vítimas entre 1995 e 2008 permitiu-se a comparação com José Genoino, petista sentenciado no processo do mensalão. Seus advogados — comandados pelo ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, para ninguém se esquecer de que continuamos no Brasil — usarão a suposta semelhança com o caso famoso e a idade do criminoso (77 anos), para reivindicar a regalia verde-amarela do regime semiaberto. Até o mais neófito estagiário de Direito sabe que a concessão do privilégio é certa como a morte.
Pesam contra o agora presidiário denúncias repulsivas, de abortos em série e de um feto morto que ficou meses na barriga da mulher porque o estuprador recusava-se a retirá-lo. Enquanto isso, às vítimas sobra a efêmera sensação de alguma Justiça. Uma das seis mulheres que tiveram a coragem de vir a público denunciar o tarado, a empresária Yvany Serebenic festejou a prisão — mas não muito.
— Achei que ia ficar muito feliz, mas não conseguia imaginar a sensação. Agora o medo é que ele não fique preso — lamenta, em tom de desalentada profecia.
Sirlei, a doméstica espancada pela quadrilha da Barra, também tem dores para carregar.
— Ainda sofro com uma luxação no pulso direito, provocada pelo espancamento. Ia fazer uma cirurgia, mas, em três ocasiões, tive de adiá-la devido a outros problemas de saúde.
Porque falta muito, falta demais, para que o Brasil possa se orgulhar minimamente de sua Justiça.