quinta-feira, 30 de outubro de 2014

"Dilma começa perdendo", editorial do Estadão

Muito mais do que uma desforra pessoal do presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Alves, do PMDB do Rio Grande do Norte - que atribuiu a Lula a sua derrota na disputa pelo governo do Estado para o seu adversário do PSD, Robinson Faria -, a derrubada do decreto da presidente Dilma Rousseff instituindo a participação de conselhos populares na elaboração de políticas públicas federais foi um sinal dos tempos. Trata-se do primeiro bote do principal partido da base aliada do Planalto para se impor ao PT no segundo mandato da governante petista. Em parceria com a oposição e três bancadas tidas como leais ao Executivo - PDT, PR e PSD -, a sigla do vice-presidente Michel Temer não esperou a posse formal de ambos em 1.º de janeiro para participar a seu modo do "diálogo" que a candidata reeleita apregoou na sua primeira fala depois da apuração.
É bem verdade que Dilma tinha tudo para perder essa batalha. Tão logo tomou, em maio último, a malfadada iniciativa de abrir espaço na mesa de decisões administrativas - até das agências reguladoras federais - ao que chamou de "grupos sociais historicamente excluídos", ficou escancarado o DNA chavista da medida, porque, ao silenciar, de caso pensado, sobre os critérios que guiariam a formação do denominado Sistema Nacional de Participação (SNP), a presidente só faltou proclamar a sua serventia como modalidade adicional de aparelhamento do Estado e, também à maneira bolivariana, amputação de prerrogativas do Legislativo. De nada adiantou o desdém de Dilma pela inteligência alheia ao negar que os órgãos públicos não ficariam obrigados a se aconselhar com presumíveis representantes da sociedade, mas "deverão considerar" esse procedimento.
Antes que a campanha eleitoral esvaziasse o Parlamento, o PT recorreu a manobras de todo tipo para barrar a votação do decreto. Agora não deu - e a excrescência foi rejeitada por aclamação pela Câmara. (Falta ainda o voto do Senado.) Fica assim a presidente notificada de que, diferentemente do que ocorreu no quadriênio em vias de se encerrar, quando PT e PMDB tendiam mais a se entender do que a divergir em matérias de interesse do Planalto, a atitude da legenda do vice e dos titulares das duas Casas do Congresso será basicamente de confronto com o partido do poder, reproduzindo na esfera parlamentar o combate entre petistas e antipetistas que marcou a sucessão. Já não se trata de reencenação da disputa por espaço na Esplanada dos Ministérios e nas estatais. O que o PMDB quer é assumir o comando da política nacional, abrindo-se a uma aliança tácita com a oposição. Diga-se o que se queira da tigrada, menos desprezar o seu faro para a debilidade alheia.
E nunca o PT esteve tão fraco desde a primeira presidência Lula. Na votação de 5 de outubro para a Câmara, o partido perdeu 1,3 milhão de votos e 18 cadeiras. Com as 70 que vai ocupar na próxima legislatura ainda terá a maior bancada, mas a diferença de 2010 para agora entre o número de assentos petistas e os do PMDB encolheu de 17 para 4 somente. Além disso, considerando os sufrágios colhidos, o PSDB de Aécio Neves tornou-se proporcionalmente a segunda força da Casa. Em números absolutos, a sigla foi uma das mais bem-sucedidas entre as 28 dotadas de representação parlamentar a partir de 2015: os tucanos serão 54, com um ganho de 10 lugares. Além de a nova composição da Câmara favorecer o PMDB em detrimento do PT - como possivelmente se verá na disputa entre eles pela presidência do colegiado, em fevereiro -, o partido de Dilma perdeu o controle da rua para atiçá-la contra quem quer que seja.
Há de ter sido por isso que a presidente, em sintonia com os companheiros, teve a ideia de exumar a proposta de convocação de um plebiscito para a reforma política, o que o PMDB já havia posto a pique no ano passado. Isso daria ao PT a chance de brigar pela retomada do espaço perdido na arena pública - e, a partir daí, voltar a pressionar o Congresso. Para os peemedebistas foi um presente inesperado: mais uma vez rebatendo de imediato a manobra, a cúpula partidária desafiou Dilma abertamente - e ela piscou primeiro, ao admitir que a reforma poderia ser submetida a consulta depois de aprovada pelo Congresso.