domingo, 29 de junho de 2014

"Dunquerque e o aprendiz de feiticeiro", por Oliveiros S. Ferreira

 O ESTADO DE S.PAULO


O quadro eleitoral de São Paulo é rico em lições. A trajetória política de Paulo Skaf evidencia que a indústria paulista não tem medo do futuro. Ou comprova a tese de Oliveira Vianna sobre a desorganização da sociedade brasileira. A aliança PSDB-PSB mostra o que é a política brasileira do ponto de vista ideológico: "Meu pirão primeiro". É o "pântano". E os mosqueteiros do rei se lançam contra o Decreto 8.243, enquanto Richelieu comanda o processo.
Não hesitei em formar com os que viram no D8243 a criação de um grande soviete. Haveria outra explicação? Talvez. Vejamos. No processo russo, os sovietes eram criação espontânea que bolchevistas, menchevistas e socialistas-revolucionários tentavam controlar. Se a ação dos nossos mosqueteiros segue isolada e o desinteresse político da indústria permite pensar que tudo vai bem, qual o projeto do PT que comove tantos liberais? Por que temê-lo, se os interesses materiais da chamada burguesia estão preservados, se os programas sociais e de participação popular permitiriam que o regime fosse mais democrático? Ainda que teórica, a questão é importante se tomamos como pressuposto que a batalha real que se trava é pela imposição de uma concepção do mundo ou, pelo menos, por um novo tipo de organização política e social.
A imagem que me ocorre é a da retirada da Força Expedicionária Inglesa de Dunquerque, em 1940: primor de improvisação combinada com organização que permitiu que, sem armas, 300 mil soldados fossem recebidos como heróis na Inglaterra - o que levou Churchill a dizer: "Não se ganham batalhas com retiradas". Até hoje se discutem os motivos que levaram Hitler a ordenar a pausa na ofensiva que teria derrotado o inimigo. O fato é que a ordem de cessar fogo foi dada e permitiu aos ingleses, na sua ingenuidade, imaginar que a guerra havia terminado. Alguns desejavam a paz, pois os interesses estavam preservados: a ilha era inglesa e o Império, também. Churchill, primeiro-ministro, sabia, porém, que a guerra era entre duas concepções de civilização.
Para saber qual Dunquerque temos pela frente, a primeira pergunta será: qual o objetivo do PT? O poder, evidentemente. O poder, sim, mas para quê? O Lula da eleição contra Collor já não existe. Ele pode dizer, na convenção do PT, que é preciso combater os oligopólios e o capital espoliador. Seu discurso hoje, como não foi durante seus governos e os quatro anos de Dilma Rousseff, não é contra a propriedade. Nem contra o capital produtivo. Lula e os petistas objetivam o poder para usufruir as benesses que ele propicia, especialmente o prestígio - que lhes permite festejar qualquer coisa como burgueses na corte de Versalhes - e o controle não sobre a sociedade, mas sobre os produtores (proprietários e trabalhadores). Os instrumentos legais e financeiros do governo estão à disposição daqueles que comandam a política e a produção. E isso lhes basta como projeto político - ainda que para realizá-lo tenham de subverter a ordem em que se criaram.
Voltemos ao D8243, que, mais bem refletindo, é uma ordem de Hitler para parar a ofensiva. Não a de Rommel à frente, mas a dos que, após a pregação anterior nas praças e nas escolas, se sentem com direito a romper as amarras da velha sociedade e sair às ruas... por livre-iniciativa, sem organização central, reclamando participação e democracia direta.
Levantar hipóteses e refletir criticamente é fundamental para que possamos compreender o processo que vivemos, em que a indústria aceita a sua Dunquerque e os liberais não têm uma grande inteligência que os una num projeto de Estado nacional. Essa hipótese que aqui trago é imposta pela observação dos fatos, como ensinava Holmes. Diria que tudo começou com o MST, seguido pela Via Campesina, que nunca foi punida pelos governadores ou pela Justiça. Esses movimentos criaram suas próprias organizações que permanecem incógnitas - e ao PT nada coube senão apoiá-los. Sendo-lhes suporte político e intelectual, contribuiu para que uma ideia simples, do século 18, a de que o agronegócio é o mal que destrói a natureza, fosse difundida por certa pedagogia pseudoanarquista, criando bases emocionais para ações mais ousadas.
Do campo, a ideia de que a organização não partidária impõe a vontade da massa e faz a democracia chegou rapidamente à cidade e, aqui e ali, despontaram movimentos sem outro objetivo que "participar", "fazer" a democracia direta, que os "300 sem-vergonha" que Lula denunciara não permitiam ser feita. O PT, desde a Constituinte, deu enorme contribuição para a desmoralização do sistema político de que deseja, agora, servir-se, já destruído, para se manter no poder. Aprendiz de feiticeiro, a representação popular e a democracia direta ameaçam agora o seu poder, especialmente em São Paulo.
O PT não controla o Passe Livre nem o Movimento dos Sem-Teto, muito menos os black blocs. Será preciso enquadrá-los numa diretriz de ação única que não antagonize a propriedade e permita ao partido continuar sendo o rector do processo e das vantagens conquistadas na Batalha de Dunquerque. O D8243 talvez não crie um soviete, mas pretenda apenas controlar os movimentos espontâneos que o PT não consegue dirigir. É instrumento de um projeto de poder - poder autoritário - que corre o risco de ser solapado pelo desejo de participação e de criação da democracia direta pregadas pelo próprio PT durante os anos em que esteve longe do governo.
Dilma sentiu o que significa para o governo a democracia direta - recebeu os dirigentes do Movimento Passe Livre sem saber o que lhes oferecer. Saberá o secretário-geral reduzir o ímpeto dos que querem realizar aquilo que o PT, com sua propaganda, incentivou e hoje vê como inconveniente?
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PROFESSOR DA USP E DA PUC-SP, É MEMBRO DO GABINETE E OFICINA DE LIVRE PENSAMENTO ESTRATÉGICO. SITE: WWW.OLIVEIROS.COM.BR