Prefiro ver nesta performance cívica a insatisfação manifesta quanto às escolhas que nossos governantes têm feito sobre determinadas políticas públicas
Na cobertura da Copa da Fifa no Brasil, muito tem sido comentado sobre as vaias aos governantes. Assim como sobre a alegria da torcida com a bola que rola. Mas acredito que tão importante quanto esses dois momentos seja comentar o canto à capela do Hino Nacional Brasileiro, que persiste em transgredir o limite imposto pela Fifa de execução apenas das aberturas musicais. Porque esta significativa rebeldia é o que mais bem traduz o estado de espírito da cidadania política de hoje em dia, depois das jornadas de manifestações do ano passado. O que tem feito despertar do sono esplêndido um povo que, há mais de um século, a tudo assiste bestializado.
Aos gritos de guerra ou palavras de ordem de outras formas de manifestações, prefiro ver nesta performance cívica a insatisfação manifesta quanto às escolhas que nossos governantes têm feito sobre determinadas políticas públicas — ou mesmo a inexistência delas — sem qualquer consulta aos cidadãos. Já corre, inclusive, na internet a disputa pela origem do ato de repulsa da galera contra o limite de execução dos hinos determinado pela arrogante e toda-poderosa Fifa — ato abusivo sobre determinações legais e protocolares de qualquer nação que se preze, ainda mais quando em nossa própria casa!
Se nas jornadas de junho de 2013 já mostrávamos com veemência o desacordo quanto às escolhas de nossos governantes pela construção de 12 arenas para inglês ver — em detrimento de políticas públicas de qualidade para serviços públicos como transporte, saúde e educação —, muito mais oportuno agora este tributo cívico e absolutamente pacífico, justamente nas transmissões do megaevento para todo o planeta. Enquanto isso, alguns manifestantes do lado de fora das ditas arenas ainda persistem nas reivindicações para que o governo brasileiro recobre o brio nacional e revogue a absurda isenção tributária concedida à Fifa, coisa pra lá de um bilhão de dólares, sobre o seu monumental lucro com a operação da Copa no país, além da exigência de que se cumpra o prometido investimento social de construção de campos e praças de esporte para escolas públicas dos estados hospedeiros do evento.
Bem-vindos sejam, pois, gestos de protesto tão espontâneos quanto eficazes como estas reincidentes execuções do hino à capela. Com o ganho cívico de que são rebeldias contagiantes e elucidadoras da distinção que a galera aprendeu a fazer entre o verdadeiro patriotismo e a demagogia barata do falso orgulho nacional negociado por governantes populistas com delinquentes cartolas do futebol internacional. Além da vantagem prática de que não são manifestações que possam ser infiltradas de black blocs e reprimidas por qualquer aparato policial. Diria até mesmo que têm sido virais no poder de espalhar numa escala geométrica o amor à pátria das antigas disciplinas de moral e cívica, que nossos governantes mal intencionados revogaram dos currículos escolares públicos do país. O fato é que os jogadores de seleções de tempos atrás mal balbuciavam frente às câmaras os versos de ordem invertida e gongóricos adjetivos da norma culta. Hoje, ensinados e motivados pelo despertar da cidadania política nacional, numa verdadeira aula de civismo explícito, nossos jogadores cantam em uníssono com esta nova galera de cidadãos, cada vez mais exigentes em participar do destino das coisas públicas.
Jorge Maranhão é diretor do Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão