Elaine Guerini, de Cannes - IstoE
Atriz judia estreia na direção com filme que trata da formação do estado de Israel e se prepara pra viver Jackie Kennedy em novo filme de Pablo Larrain
HORA CERTA
Natalie Portman teve de reaprender hebraico para dirigir e atuar no filme.
Hoje estou pronta para o papel. Não era o caso há oito anos"
Natalie Portman nasceu Natalie Hershlag, em Jerusalém. Deixou Israel com três anos de idade para viver nos Estados Unidos onde começou adolescente uma carreira brilhante coroada com um Oscar e dois Globo de Ouro, aos 28. Aos 33, a psicóloga de Harvard se lança na direção com um projeto ousado que remete a suas origens. “De Amor e De Trevas” (“A Tale of Love and Darkness”), ainda sem data de estreia no Brasil, trata da formação do Estado de Israel. Além e dirigir, ela interpreta a mãe suicida do escritor israelense Amoz Oz, autor do livro homônimo, que libera uma adaptação pela primeira vez.
"Prometi a Amos Oz não simplificar ou dar qualquer
explicação para o suicídio de sua mãe"
A atriz evita se pronunciar sobre a questão judaica. Mas em dois momentos o posicionamento foi inescapável. Logo depois de ganhar o Oscar em 2011, pela atuação no filme “Cisne Negro”, quando abandonou uma campanha milionária para a Dior, por causa da divulgação de um vídeo com o chefe de criação da marca, John Galleano, dizendo amar Adolf Hitler. Seu pronunciamento de repúdio rodou o mundo e culminou com a demissão do estilista. E agora, ao levar à 68ª edição do Festival de Cannes o filme falado em hebraico do autor que lutou na Guerra de 1967. “Só conseguiria me lançar numa empreitada desse porte para tratar de uma problemática que mexe profundamente comigo”, disse a atriz à ISTOÉ.
"A vida de Jackie é fascinante demais para que eu cogitasse recusar o papel"
Você não se sentiu intimidada por abordar, logo no seu filme de estreia como diretora, uma questão tão polêmica como a criação do estado de Israel?
Não. Eu só conseguiria me lançar numa empreitada desse porte para tratar de uma problemática que mexe profundamente comigo. O filme não aborda apenas o conflito e o que houve de heróico ou condenável nos primeiros anos da ocupação de Israel. É um drama familiar, mas também um relato peculiar e sensível sobre o desafio da formação de um país, a começar pela busca por uma língua. O renascimento do hebraico, um dos temas do livro, talvez seja uma das histórias mais loucas do século passado. Eles simplesmente tomaram uma língua praticamente morta, usada apenas para orações, e fizeram dela uma língua falada. Eu tive de mergulhar no contexto histórico daquele momento, o que, por acaso, incluía o início de um país. Isso não acontece todo dia.
Mas é inevitável observar que a história do início desse país, algo bastante controverso dede o começo, é contada no seu filme do ponto de vista do israelense que viveu o sionismo. Existe uma vontade de sensibilizar o público para as questões da população israelense?
Reconheço a importância de livros e de filmes com a função de abrir os nossos olhos para povos e realidades diferentes. Filmes ajudam a entender as pessoas com as quais não temos contato, que vivem do outro lado do mundo. É um privilégio conhecer histórias específicas, de diferentes nacionalidades, do ponto de vista dos outros. Há muitos caminhos nessa vida. O importante é sentirmos empatia pelo que acontece com os outros também.
Ficou à vontade para atuar em hebraico?
Não. Foi mais difícil do que eu esperava. Sempre falei a língua por querer estar próxima da minha origem, mas ainda cometo muitos erros. Todos riem de mim quando me confundo na hora de usar o masculino e o feminino, algo que, felizmente, não existe em inglês (risos). Ainda tive de amenizar o meu sotaque. Como a minha personagem é uma imigrante no filme, ela poderia ter sotaque. Mas não o americano. Poderia até ser um sotaque estranho, mas não identificável.
Incomoda você o fato de uma sociedade com consciência política ter escolhido como líder Benjamin Netanyahu (o primeiro-ministro israelense e chefe do partido conservador Likud)?
Quer eu goste ou não, isso é democracia. Em Israel, como na França e nos Estados Unidos. Às vezes, um candidato que você jamais escolheria é eleito, como foi o caso lá. Obviamente eu não concordo com os seus comentários racistas e fico decepcionada com a falta de progresso nas negociações de paz do seu governo. Acredito piamente no direito de todos à dignidade e à liberdade. Por isso é importante que o povo descontente levante a voz, fale o que pensa e proteste quando as coisas começam a seguir por um caminho errado.
Passar uma temporada em Israel, lugar que você deixou na primeira infância, mudou a sua percepção sobre o país?
Não muito. O que sempre me fascinou em Israel é o debate vibrante que acontece em todo o lugar. As pessoas brigam por política e brigam com muito amor. São centenas de opiniões, num diálogo inesgotável e inescapável. Eles podem não concordar com você, mas gostam da discussão. Faz parte da vida do israelense, ainda que seja um jeito muito tenso de viver. Você não consegue ir a lugar algum sem que o assunto em pauta seja política ou economia.
Qual o papel da religião na sua vida?
Vejo a religião como um princípio cultural e organizacional. Tive a sorte de produzir um documentário este ano, chamado “The Seventh Fire”, que Jack Pettibone Riccobono realizou sobre gangues de nativos americanos no estado de Minnesota. O filme mostra como eles reabilitam os integrantes de gangues, ensinando-lhes novamente a cultura do povo. Há algo na nossa natureza que precisa de rituais. Os rituais judaicos sempre foram importantes na minha vida. É uma forma de eu nunca esquecer de onde vim. Para as coisas mais específicas da vida, no entanto, prefiro a moral não religiosa, o que me permite desconsiderar o que não serve mais.
É verdade que você não concorda com a maneira como o Holocausto é ensinado nas escolas, por ofuscar outras vítimas que não os judeus?
Não há dúvidas sobre a importância de lembrarmos e respeitarmos o Holocausto. Mas não podemos esquecer que o ódio sempre existiu na história da humanidade. Nós precisamos sentir empatia pelas outras comunidades que também sofreram do mesmo mal. Nós judeus não podemos ser paranóicos e nos colocar como as únicas vítimas do Holocausto.
Quando se deu conta disso? Houve um momento em particular?
Percebi a minha ignorância sobre as tragédias de outros povos ao viajar para Ruanda, integrando a equipe que rodou o documentário para televisão “Gorillas on the Brick”, em 2007. Ao visitar um museu local, fiquei chocada com a história do país, principalmente com o genocídio de 1994. Por que nós não aprendemos isso na escola?
Como uma cineasta estreante conseguiu convencer o autor Amos Oz a vender os direitos da obra depois de outras negativas a diretores mais experientes?
Mostrei minha paixão e meu respeito pelo projeto. E prometi a Amos Oz não simplificar ou dar qualquer explicação para o suicídio de sua mãe, que ocorreu quando ele tinha 12 anos. Foi isso que o impediu de vender o livro a outros cineastas que o procuraram no passado.
Cannes tem o poder de alavancar ou destruir a carreira de um filme. Você não teve medo de fazer a première de seu primeiro longa-metragem como diretora no maior festival de cinema do mundo?
Sabia que seria inevitavelmente submetida às críticas. Mas aprendi há muito tempo que todo artista precisa aprender a levar porrada da crítica e do público. No momento que você resolve se expor, apresentando a sua obra publicamente, tem de perder o medo. Isso é o que eu sou e o que eu penso, independentemente do que vão dizer.
Você criou o filme para atuar nele?
Não. Queria escalar uma atriz israelense. Mas foi impossível pelo fato de o filme não ter vocação comercial. Justamente por eu dirigir pela primeira vez, para conseguir investidores, tive de garantir que o filme tivesse visibilidade. Não conseguiria o financiamento de US$ 4 milhões se tivesse insistido em filmar com uma atriz desconhecida. Além do que, hoje estou pronta para o papel; não era o caso, quando eu me interessei pelo projeto, há oito anos.
Você vai atuar em duas cinebiografias importantes previstas para este ano, uma sobre Jacqueline Kennedy (“Jackie”, de Pablo Larrain) e a outra sobre Ruth Bader Ginsburg (“On the Basis of Sex”, de Mareille Heller). É uma preferência sua por papéis verídicos?
Na verdade, dei muita sorte! Sou beneficiada pelo fato de mulheres morenas e pequenas como eu terem feito tantas coisas interessantes (risos). Obviamente a vida de Jackie é fascinante demais para que eu cogitasse recusar o papel. Admiro muito o trabalho do cineasta Pablo Larrain. O filme vai retratar os primeiros dias de Jackie após a morte de John F. Kennedy. Vamos mostrar como ela lidou com o assassinato e com o funeral. Também será uma honra interpretar Ruth, a primeira judia a assumir o Supremo Tribunal de Justiça dos EUA. Ela é uma heroína na luta pela igualdade e pelos direitos humanos.