Apesar do caos, da controvérsia e da sem-vergonhice (quem sabe, graças a este último ingrediente), Sepp Blatter foi reeleito na sexta-feira para um quinto mandato como presidente da Fifa. Para falar do Fifão, eu convoco um craque para a coluna sabática: o veterano jornalista John Carlin, um britânico com profundas conexões latino-americanas e sul-africanas. O texto abaixo publicado no El País é uma amostra da categoria de Carlin, bom de bola para escrever de esporte e que hoje vive em Barcelona. Boa leitura!
***
John Carlin
John Carlin
Sepp Blatter gosta de se referir ao órgão que preside como “a família FIFA”, o que animou um jornal de sua Suíça natal a chamá-lo de “o poderoso chefão, Don Blatterone”. A questão hoje é se Blatter, como presidente da FIFA desde 1998, é o astuto capo di tutti capi de uma máfia do colarinho branco que administra milhares de milhões de euros gerados pelo futebol internacional ou se, aos 79 anos, é o que parece ser: um vovô distraído com tendências burlescas que não sabia das más ações dos corruptos ao seu redor.
David Yallop, autor de um livro sobre a FIFA chamando How They Stole the Game (Como Eles Roubaram o Jogo), escreve que Blatter “tem 50 novas ideias todos os dias, 51 delas são ruins”. Entre as mais conhecidas: ampliar o espaço entre as traves, para que façam mais gols; que as mulheres jogadoras se vistam “com shorts mais apertados e camisetas com muito decote”; propor que durante a Copa do Mundo de 2022 no Catar, um país onde a homossexualidade é ilegal, os torcedores gays se abstenham de qualquer atividade sexual.
Daria para preencher um álbum com suas palhaçadas ou mancadas. O que também todo mundo sabe, ainda mais depois de quarta-feira, quando a polícia suíça prendeu sete diretores de alto escalão da FIFA, é que muitas das pessoas que cercam Blatter encheram os bolsos com dinheiro de suborno. Ele sustenta que não sabia de nada. Uma olhada em seu currículo coloca em dúvida essa declaração.
Nascido em 1936 na aldeia alpina de Visp em uma família da classe trabalhadora, desde jovem foi jogador e entusiasta do futebol amador. Entrou na FIFA em 1975 e entre 1981 e 1998, foi seu secretário-geral, o que significava que era o braço direito do então presidente do organismo, João Havelange. Mais alerta do que seus antecessores para as possibilidades econômicas oferecidas pelo patrocínio comercial e vendas de direitos televisivos das Copas do Mundo, foi ele que transformou a FIFA no que ela é hoje: uma máquina de ganhar dinheiro.
Havelange patenteou a prática de comprar votos para ganhar a presidência da FIFA e para designar sedes da Copa, sempre com o propósito paralelo de encher seu próprio bolso. Só em 2012 a FIFA fez uma investigação interna que comprovou que Havelange e seus comparsas tinham aceitado subornos sistematicamente durante oito anos.
Não há nenhuma prova de que Blatter foi um dos beneficiários, mas ele deve ter sido muito cego ou muito incompetente, para não ter nenhuma ideia do tenebroso modus operandi de quem foi seu chefe durante 17 anos.
Blatter, casado três vezes, começou seus 17 anos como presidente da FIFA no ano em que Havelange saiu. Há uma extensa documentação, nunca refutada nos tribunais, de que Blatter, o eleito de Havelange, ganhou a presidência em 1998 graças a envelopes cheios de dinheiro, distribuído entre os eleitores do comitê executivo da FIFA por um aliado de Blatter chamado Mohamed Bin Hammam, de Catar. Em 2011, Bin Hammam foi banido por toda a vida do futebol organizado depois de ser considerado culpado pela Fifa de tentar comprar votos a seu favor, quando apresentou sua própria candidatura presidencial contra Blatter.
Blatter parece não ter percebido a ironia da situação, ganhando naquele ano as eleições pela quarta vez consecutiva, como também parece ter esquecido hoje das estreitas relações que teve com alguns dos membros da FIFA que foram acusados esta semana de corrupção.
Talvez o que mais tenha se enriquecido – fala-se de dezenas de milhões de dólares – tenha sido Jack Warner, ex-vice-presidente da FIFA e chefe da CONCACAF com cujos votos Blatter sempre pôde contar na hora de concorrer às eleições. Warner teve que renunciar após o escândalo que acabou com a carreira de Bin Hammam em 2011, mas já havia acumulado dinheiro suficiente para construir um centro de conferências em sua Trinidad e Tobago natal, onde existe um salão chamado Sepp Blatter Hall. Blatter devolveu o favor quando Warner deixou a FIFA, agradecendo em um comunicado oficial “por seus muitos anos dedicados ao futebol”.
O escolhido por Blatter como substituto de Warner à frente da CONCACAF foi Jeffrey Webb, das Ilhas Caimã, que também aparece na lista dos detidos na Suíça, esta semana, todos bem conhecidos pelo presidente da FIFA.
Dá para acreditar, então, que Blatter é inocente de qualquer delito e ignorante dos crimes de seus amigos? É possível que o homem que há 17 anos lidera uma organização cheia de ladrões, que gastou muito mais dinheiro em despesas e salários do que em sua declarada missão, o desenvolvimento do futebol mundial, seja apenas um bobo da corte incompetente? A lei vai dizer, supostamente. Enquanto isso, o que se pode afirmar com segurança é que ao longo de sua carreira ele demonstrou ter uma pele de rinoceronte misturada com uma camada espantosamente protetora de teflon.