quarta-feira, 1 de agosto de 2018

'Nosso maior problema é o foro privilegiado', diz Carlos Fernando dos Santos Lima, coordenador da Lava-Jato


Procurador da República Carlos Fernando dos Santos Lima, em foto de 22/08/2017 - Geraldo Bubniak / Parceiro / Agência O Globo


Coordenador da Lava-Jato em Curitiba, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima reclama de delações estacionadas no gabinete Procuradoria-Geral da República, travando as investigações em Curitiba. E sustenta ainda que um dos instrumentos que emperra as investigações no país é o foro privilegiado: "Onde você bota a mão, tem o foro privilegiado, e tudo se atrapalha". O procurador afirma ainda que considera "impossível" governar o Brasil sem apoio de partidos envolvidos na Lava-Jato. "É o nosso problema do presidencialismo de coalizão. Nosso problema é mais grave, de fundamento. Sem reforma política, quem vai governar?"

Como avalia os 10 meses de Raquel Dodge como PGR?
Parece que é um mal que acomete os PGRs, não apenas ela. A função é muito exigente, todos eles se isolam um pouco além da conta. O José Alfredo (Silva, coordenador da Lava-Jato na PGR) é bem preparado. Mas hoje há um problema que é o oposto do que ocorria na época do (Rodrigo) Janot (ex-PGR). Se ele fez acordos muito rápidos, estamos agora com muitos acordos bloqueados. Pode ser uma pressão do próprio Supremo, alguém dizendo informalmente: "os acordos foram ruins, agora não quero mais". Extremos é que não podem acontecer. Tem que analisar os acordos individualmente. São bons ou não são?

Se queixaram a ela?
Levamos através dos nossos canais. Mas hoje o isolamento é tão grande que temos pouco contato. Melhor seria que essas coisas fossem feitas de modo suave. Se há algum problema, que nós fossemos informados, resolvêssemos. Aí as pessoas dizem: "a força-tarefa está acabando". Não é que está acabando. Estamos enfrentando dificuldades procedimentais para dar sequência. É uma coisa que, se não for resolvida, vai matar a investigação. Vai acabar prescrevendo crimes, por falta de ação. Eu não posso fazer milagre. Mas no geral, não temos grandes reclamações a respeito dela.

E o que a equipe responde?
Basicamente que (os assuntos) estão sob análise. Ela fechou alguns acordos, mas tem outros importantes, que estão parados. A coisa mais frustrante é eu saber (dos fatos relatados pelos delatores). Se eu sei e não posso usar, tudo bem, está resolvido. Mas se eu sei, poderia usar, mas estou bloqueado, é uma situação difícil. É uma coisa que a gente poderia ter resolvido já tem quase um ano. O meio termo e o bom senso tem que prevalecer para resolver esses problemas. Mas eu espero — e a gente tem feito uma pressão grande — que isso se resolva.

Este hoje é o principal problema?
O nosso maior problema é foro privilegiado. Isso não deixa de ser uma decorrência do foro. Essa coisa da Segunda Turma de julgamentos monocráticos (no STF) ficar julgando os processos (para encaminhar) ao eleitoral, sem nenhuma razoabilidade. Evidentemente que não é eleitoral, tanto que o eleitoral está devolvendo. Os tribunais regionais (eleitorais) são problemáticos. No primeiro grau, pelo menos, a gente trata com juízes, promotores de justiça, que têm uma lógica. Nos TREs, a lógica é mais política, são compostos por advogados.

O foro privilegiado ainda é um problema?
Onde você bota a mão, tem o foro privilegiado, e tudo se atrapalha. Veja o caso que envolvia o (Beto) Richa (ex-governador do Paraná). Vem para cá, aí vem uma decisão de cima mandando para o Eleitoral, o Eleitoral manda para cá, eles vão recorrer ao TSE, que é possível mandar para o Tribunal (Regional eleitoral), que vai decidir a favor do Richa, obviamente. Vão tentar tirar daqui de novo. É mais difícil investigar o Paraná do que investigar no âmbito nacional a Petrobras. Dou a mão à palmatória de que o Rio fez um excepcional trabalho.

A alteração do foro no STF não surtiu o efeito que se esperava?
Surtiu efeito, mas a extensão dela ainda é para o Congresso, eles não ampliaram. Este é o principal obstáculo que temos, não é a falta de investigação. É a crítica que temos feito também em relação a estes arquivamento do caso Odebrecht. Eles não têm sido por falta de investigação, mas pelas dificuldades que temos em investigações do STF. Qualquer coisa que eu tenho que fazer, tenho que passar para o ministro autorizar. Não é como aqui, onde PF e MPF têm autonomia, apenas se houver alguma coisa muito importante e delicada, que envolva direitos fundamentais, a gente pede para o juiz.

O senhor fica frustrado com organização do sistema de justiça?
Eu me frustro com esta nossa incapacidade de resolver todas estas questões e me frustro com esta coisa de colocar a culpa nos órgãos de investigação, quando o problema está no procedimento. Se essas investigações estivessem em primeiro grau, teríamos muito melhor resultado. Se eu só puder investigar caso que não tenho foro ou que escape dessa peneira que eles estou tentando impor com o (Tribunal) Eleitoral, vou fazer o quê? Vou investigar funcionariozinho público. O sistema tem agido de modo a impedir a eficiência das investigações. Temos boas investigações, alguns casos que poderiam nascer assim como uma nova Lava-Jato. A gente vive sendo cerceado por estas decisões.

Lula é principal liderança de peso cumprindo pena de prisão. A reorganização do sistema, comprometendo a eficácia das investigações, não dá força ao discurso dele, que se diz vítima de perseguição?
Não acho que ele seja a única pessoa atingida. Tivemos aqui o próprio Aécio Neves, que hoje está tendo dificuldades para ser mais do que deputado federal. Depois do cataclisma (da Lava-jato), os sobreviventes não são exatamente os melhores possíveis. O PT terá muitos problemas na próxima eleição, mas não é só o PT, o próprio PSDB enfrenta enormes dificuldades. A minha pergunta é: se eu soubesse da situação em que chegaríamos hoje, teria feito o mesmo? Minha obrigação é fazer. Não tenho essa escolha. A Justiça tem que funcionar, o princípio é esse. Se vai ter consequências políticas, é outra história, que não está na nossa possibilidade de agir.

Mas hoje o sr. diz estar de mãos atadas...
Infelizmente, algumas investigações envolviam o foro privilegiado e foram mais ou menos atrapalhadas, poderíamos estar mais adiantados. Mas isso não é responsabilidade da Lava-Jato de Curitiba. Sobrevivemos diante da pressão política, fizemos o melhor que podia ser feito. Pior teria sido se eu tivesse dito: não vamos fazer, porque se nós investigarmos corrupção, vai prejudicar mais X ou Y. Obviamente, que depois de 13 anos de governo federal, eu e os colegas que investigamos crimes federais sabíamos que era mais óbvio quem ia ser atingido.

O que acha de Lula se manter candidato para influenciar, no fim, a escolha de um indicado por ele?
A Justiça Eleitoral deve evitar qualquer tipo de jogo que influencie a votação, devem estar ali os candidatos que são elegíveis. Ele pode manifestar apoio. Entretanto, não se deve jogar com as regras eleitorais, a ponto de subverter a própria lisura das eleições. Isso é preocupante. Naturalmente, não temos influência sobre isso. Na minha opinião, ele é inelegível.

Oposição e governo consideram possível que ele leve um candidato ao segundo turno, mesmo da cadeia. É alguém que abraçará o discurso de Lula contra vocês. Isso incomoda?
Faz parte da democracia. Às vezes vejo sair no radar qualquer coisa assim: "a Lava-Jato apoia fulano”. Isso não existe, temos opiniões bastante diversas em termos políticos. Dentro das regras da elegibilidade, da propaganda eleitoral, se tudo for obedecido, quem for eleito, está eleito. Temos nada a ver com este fato. Se (o eleito) for contra nós, contra o Ministério Público — e vejo alguns querendo propor reformas do Judiciário — isso aí significa basicamente coibir que novas Lava-Jato apareçam. Isso tem que ser exposto e combatido, dentro do regime democrático. Temos uma influência (no jogo eleitoral) porque nosso processo levou o Lula a ser preso. Mas é uma decorrência indireta. Não vamos ser atores diretos.

É possível votar em presidente corrupto e que não apoie corrupto?
Acho que é possível. Agora, se você me pergunta se é possível governar o Brasil sem apoio de partidos envolvidos na Lava-Jato, não sei, acho impossível. É o nosso problema do presidencialismo de coalizão. Nosso problema é mais grave, de fundamento. Sem reforma política, quem vai governar? Você vê agora que o (Geraldo) Alckmin, que supostamente seria o candidato com ligações com o empresariado, discute a volta da contribuição sindical, por causa do apoio de partidos que se dizem de direita, para manter estrutura sindical. Isto é assim... você pega o revólver e dá um tiro na cabeça, né? Não existe consistência ideológica.

Está desanimado?
A gente vai lutar. Tem o pacote da Transparência Internacional (Unidos contra a Corrupção) que a gente tá apoiando. Ele vai além das 10 medidas, porque sem saneamento político, democratização dos partidos, entre outras medidas, é (o mesmo que) enxugar gelo. Se não caminharmos para isso, não é o próximo governo que vai resolver. Podemos ter um boom de comodities, daí parece que tá tudo bem. Vem um governo incompetente, o corte do financiamento internacional (da economia), vai tudo pro espaço. Ficamos sempre neste ciclo.


Thiago Herdy, O Globo