quinta-feira, 30 de agosto de 2018

"A beleza da democracia", por Ascânio Seleme

Corrupto condenado, Dirceu está livre por decisão do ministro Toffoli e pode percorrer o país em noites de autógrafo e passar o Natal em família


Na terça-feira, recebi convite da Força Sindical para o lançamento da revista “1968 e os trabalhadores”, um documento produzido pelo Centro de Memória Sindical para iluminar o papel dos trabalhadores naquele ano de grandes transformações políticas e culturais em todo o mundo. O conteúdo da revista não será discutido aqui, embora possa até ser um bom registro histórico, já que se conhece muito mais o papel de estudantes e intelectuais em 68 do que o dos trabalhadores. O que chama atenção é o título da convocação da Força: “José Dirceu e Aldo Rebelo estarão presentes no lançamento da revista”.

Dirceu e Rebelo são apresentados no release respectivamente como ministro da Casa Civil do governo Lula e che fe da Casa Civil do governo de São Paulo. Rebelo assumiu em agosto a função na gestão do governador Márcio França, cujo nome não é citado no texto do e-mail. Dirceu ficou dois anos no governo Lula, até ser demitido no escândalo do mensalão. Isso também não é explicitado na convocatória. Tampouco é mencionado o fato de ele ter sido em seguida cassado de seu mandato de deputado federal e condenado pelo STF a sete anos de prisão por corrupção, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e peculato.

O texto da Força Sindical tampouco informa que o ex-ministro também foi condenado a outros 30 anos de prisão por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa no âmbito da Operação Lava-Jato. E que só está solto por força de liminar concedida pelo ministro do STF Dias Toffoli, advogado-geral da União no mesmo governo Lula do qual Dirceu participou. Dirceu, de acordo com o release, foi uma das fontes consultadas para a produção da revista sobre os trabalhadores porque “em 68 era uma grande liderança estudantil”.

O fato é que um homem condenado no total a quase 40 anos de prisão em dois casos muito graves de corrupção é um dos homenageados de uma central sindical que colocou o seu nome como chamariz da peça publicitária que convoca para o lançamento do documento histórico produzido por intelectuais afiliados ou simpatizantes. Em plena atividade política e social, o mesmo José Dirceu deu uma entrevista no começo da semana para o jornalista Eumano Silva, do portal Metrópoles, onde afirma que “o mensalão foi uma farsa, não existiu”.

Na entrevista em que fala sobre seu livro de memórias recém-lançado, Dirceu diz que o escreveu para sua filha de 8 anos e para as novas gerações. Ele afirma que fez um balanço de suas muitas vidas (de fato, esta característica dele é inquestionável) e que este primeiro volume conta sua história até 2006, ano em que foi denunciado no primeiro escândalo. Ele diz ainda que já tem material reunido para fazer o volume dois. Mas que só vai escrever no ano que vem, porque de agora até novembro percorrerá o Brasil em seções de lançamento do livro. “Depois tem o fim de ano, a família”. Quer dizer, Dirceu está certo de que, apesar de condenado a dezenas de anos de cadeia, seguirá sua vida normalmente.

Essa é a beleza da democracia brasileira. Enquanto um homem condenado por não importa qual crime estiver livre por força de mandado judicial, livre estará e nada se pode fazer contra isso. Pode-se tentar encarcerá-lo outra vez através dos mecanismos legais, dos foros apropriados. Fora disso, não, nada. Dirceu está livre por decisão do ministro Toffoli e pode percorrer o país em noites de autógrafo, participar de evento da Força Sindical e passar o Natal em família. Ponto.

Da mesma forma que Lula, preso por corrupção e lavagem de dinheiro em primeira e segunda instância, nesta por órgão colegiado, não pode ser candidato a presidente ou a qualquer outro cargo eletivo por força da Lei da Ficha Limpa. Mas aí, os mesmos que chamam Dirceu de guerreiro do povo brasileiro vão às ruas e fazem comícios defendendo que se desrespeite a lei e a Justiça, solte-se Lula e permita-se que ele seja o candidato do PT em outubro.

E essa é outra característica da beleza da democracia. A liberdade de expressão e de manifestação permite que qualquer um brade contra o juiz da Lava-Jato, contra os desembargadores do TRF-4, e contra os ministros do STJ e do STF. Mesmo que seja em vão.



O Globo