Mineiro de Belo Horizonte, o general Walter Souza Braga Netto, 61 anos, já viu uma guerra de perto. Em 2000, ele atuou como observador militar da ONU no processo de consolidação da independência da ex-colônia portuguesa de Timor Leste, na Ásia. Agora, combate em território brasileiro. Em fevereiro, assumiu o cargo de interventor federal na segurança do Rio de Janeiro, com a missão de devolver a tranquilidade ao estado, vergado sob o poder de fogo de quadrilhas organizadas. A população não vê resultados, os tiroteios continuam, mas Braga Netto aposta que a radicalização da política de confrontos levará os bandidos a abandonar o enfrentamento com as forças da ordem. O general recebeu VEJA, para esta entrevista, no Palácio Duque de Caxias, sede do Comando Militar do Leste (que ele chefia) e do antigo Ministério da Guerra, onde adicionou à decoração uma coleção de moedas militares comemorativas e uma camisa de seu time, o Botafogo.
Depois de seis meses, a intervenção não mudou a rotina de violência e medo no Rio. O senhor está desapontado? Não, acho que ela está caminhando como o esperado. Mas, primeiro de tudo, gostaria de esclarecer: na prática, os trabalhos começaram há pouco mais de quatro meses, em abril. Esses seis meses de que todo mundo fala são, na verdade, a contagem desde que recebi o aviso do comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas, de que eu seria interventor no Rio.
Como foi o convite? Foi só um comunicado mesmo. Não houve a pergunta: “Aceita ou não?”. No Exército, as coisas não funcionam dessa maneira. Recebi a missão e pronto.
Surpreendeu-se? Já havia conversas em curso sobre uma possível intervenção, mas achei que levaria mais tempo.
O presidente Michel Temer definiu a intervenção como uma “jogada de mestre” do ponto de vista político. O senhor concorda? Não entro nesse mérito. Minha função, e a de meu pessoal, é exclusivamente técnica.
Afinal, o que avançou nesses quatro meses em que o senhor assumiu o comando da segurança? A situação que encontrei era de penúria: salários atrasados, 60% da frota sucateada, policiais comprando o próprio colete, vários órgãos de inteligência que não conversavam uns com os outros. Fora a cultura equivocada de promover a altos cargos de comando gente que só estava lá por indicação política. A parte da escassez material está melhorando com o aporte de verba federal. Já a mudança de cultura toma mais tempo.
Uma comparação entre julho de 2017 e de 2018 mostra um aumento de 19% nos casos de morte violenta. É um retrocesso importante, não? Olhando as estatísticas do início da intervenção para cá, as mortes violentas caíram 14%. Só o latrocínio despencou 55%. Isso se deve a um esforço mais coordenado das polícias.
Dados do Observatório da Intervenção (formado por especialistas em segurança pública) revelam um aumento de tiroteios na cidade. A velha política do confronto é a saída? Os números de tiroteios que consideramos são os do Instituto de Segurança Pública, e não os do Observatório; estes incluem dados menos confiáveis de aplicativos. Para se ter uma ideia, a própria marginalidade posta informações nesses aplicativos. Outro problema é que a topografia do Rio faz com que um mesmo tiro seja ouvido em cinco ou seis bairros — e é contabilizado como se fossem mesmo cinco ou seis disparos. Também há quem confunda o som de fogos de artifício ou o estouro de pneus com o de tiros.
Mas não dá para dizer que os violentos confrontos entre as forças de segurança e os bandidos arrefeceram ou são apenas pneus estourando. Voltando à comparação entre julho de 2017 e 2018, houve uma escalada de 104% nos registros de morte decorrente de intervenção policial. O ponto é que estão morrendo menos inocentes nesses confrontos. Isso porque o trabalho de inteligência é muito mais forte. Hoje consigo acuar os marginais. Só que, no lugar de se entregarem, eles se sentem poderosos, estão armados, reagem, e, na troca de tiros, estamos acertando. Quando os marginais abandonarem essa postura irracional de enfrentamento, as mortes vão cair.
É de esperar que bandidos ajam de forma racional? Eles entenderão a situação à medida que forem se sentindo mais vulneráveis. Eu me preocupo mais é com a morte de inocentes, e isso não tem acontecido em nossas operações.
Quatro militares morreram nos últimos dias em ações da intervenção, além de moradores inocentes de grandes favelas cariocas. O que falhou nesses casos?Não houve nenhuma falha. Faz parte da profissão. O Rio não é como a guerra que vi de perto no Timor Leste, mas impõe um trabalho violento em sua essência. O policial vive em alta tensão. Estive no Complexo do Alemão e observei um PM tomando conta sozinho de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), que, aliás, estamos reestruturando em algumas favelas. Ele sabe muito bem que é alvo. Imagine o que é isso. Às vezes, o cara está estressado, nervoso, e erra. Estamos treinando, adestrando a polícia justamente para minimizar os erros.
Em que consiste esse treinamento? Um dos valores solapados nos dias de hoje é a autoridade: ela virou sinônimo de autoritarismo. O policial precisa se portar como uma autoridade que se impõe e, ao mesmo tempo, respeita a população.
O que está sendo feito para coibir os abusos de militares que a Defensoria Pública apura? Essa é uma situação complicada. Os próprios marginais pressionam a população a fazer denúncias contra as tropas que sobem o morro. Isso sempre aconteceu. Sim, há casos de desvio de conduta, mas infinitamente menos do que por parte da polícia.
O senhor bate na tecla de que as operações pós-intervenção passaram a ser mais norteadas pelo setor de inteligência. Como era antes? Quando cheguei, a inteligência no estado estava carente de meios e de doutrina. Inteligência não é só grampo, não é só escutar conversa — é análise. Havia ainda uma competição entre as polícias civil e militar para saber quem prendeu quem. Uma não se comunicava com a outra. Nessa área, você divide conhecimento apenas com aqueles em quem confia. Na minha avaliação, a presença das Forças Armadas trouxe a credibilidade que faltava para uma efetiva troca de informações.
O Exército entra em favelas removendo barreiras do tráfico que impedem a livre circulação, mas é só ele sair de cena para que elas voltem e tudo continue como antes. Como combater de fato as quadrilhas? Esse poder dos bandidos é relativo. Não há lugar no Rio em que a polícia não entre. A questão é não entrar às cegas, mas munida de informação para pegar armas e prender bandidos. Eles são como água, nós como pedra. Ponho um obstáculo, e o bandido se desvia. Quando começamos a mapear os locais onde quadrilhas guardavam seus fuzis, os traficantes passaram a carregar o arsenal consigo. Se tenho mandado de busca para entrar na casa de um, este foge para o vizinho. E aí? Aí preciso que o Judiciário seja ágil para bater na porta ao lado.
O Exército deveria então permanecer até estrangular as quadrilhas? O papel das Forças Armadas na intervenção não é ficar tutelando, mas consolidar e articular instituições — polícias, corregedoria, inteligência, vigilância de fronteiras, controle de armas dentro da própria corporação — para que combatam o crime de maneira eficaz. É um trabalho contínuo. Se a polícia precisa do Exército de forma pontual, ela nos chama. Não custa repetir: o Estado deve comparecer com serviços, saúde, educação, senão não há resultado de longo prazo.
O Estado tem feito a sua parte? Muitas vezes não cumpre a função dele, abandona a área, e o bandido retorna, claro. Um papel muito importante aí é o da prefeitura.
Ela ajuda? Quando eu chamo, ela comparece. Mas não vou entrar nessa seara.
O PCC paulista está se ramificando por todo o Brasil. Como atua no Rio? O PCC faz negócios no estado — vende armas, compra drogas —, mas não é nada de grande escala nem envolve domínio territorial. Estou em constante troca de informações com São Paulo. Mas o que me preocupa mesmo são as facções fluminenses.
Como o senhor explica a ascensão de Bolsonaro, candidato à Presidência e capitão da reserva do Exército? Para o Exército, ele é um candidato como outro qualquer.
Além de Bolsonaro, há vários outros candidatos militares no páreo. Isso reflete o quê? O aumento de candidatos militares nestas eleições representa a credibilidade que as Forças Armadas têm. Elas cultivam valores que a sociedade vem abandonando, como dedicação à pátria, culto da verdade e disponibilidade permanente.
Com a crise política, há quem fale em retorno dos militares ao poder. O senhor acha que existe alguma possibilidade de que isso venha a acontecer? Nenhuma. Como integrante do Alto-Comando do Exército, garanto que a Constituição será obedecida.
Bolsonaro e seu candidato a vice, o general Hamilton Mourão, elogiam o coronel Brilhante Ustra, notório torturador na ditadura militar. O senhor endossa essa atitude? Depois da Lei da Anistia, não falo do passado. É como se ele não existisse.
O senhor se incomoda com os crimes cometidos pelo Exército? Houve excessos de todas as partes. Mas não estou dizendo com isso que o coronel Ustra errou ou deixou de errar.
Não ter resolvido o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco depois de cinco meses é um sinal de ineficiência da polícia? Investigação não é novela, com um capítulo novo a cada dia. Estamos perto. Até o fim do ano, quando a intervenção tiver sido concluída, o caso já deverá estar solucionado.
A segurança do Rio tem jeito? Sim, mas as pessoas são imediatistas. Nada se resolverá de uma hora para outra. Não falo em meses, mas também não serão anos até que o Rio entre nos eixos.
Fernando Molica e Monica Weinberg, Veja