A geração de energia eólica no Nordeste brasileiro bateu recorde na manhã do domingo, 19 de agosto. O pico de 8.247 megawatts (MW) foi suficiente para suprir 98% da demanda da região. O consumo no fim de semana, é verdade, sempre diminui em relação aos dias úteis. Ainda assim, o Operador Nacional do Sistema (ONS) festejou a marca histórica, a segunda no intervalo de um mês. Sinal de que a eletricidade produzida pelos ventos chegou ao Brasil para ficar. Em 2017, os 508 parques representavam 8,1% da matriz energética nacional, uma fração das hidrelétricas (60,4%), mas quase empatados com o gás natural (8,5%), segundo a Associação Brasileira de Energia Eólica. A notícia me alcançou às vésperas do embarque para duas semanas de (relativas) férias na Alemanha.
O país, no ano passado, bateu recorde de geração por fontes renováveis. Hoje, 35% do consumo vêm de parques eólico, solar, hídrico e biomassa. Nas autoestradas alemãs, a gente se depara com campos de aerogeradores com a mesma frequência de quem circula por Rio Grande do Norte, Bahia ou Ceará, os três estados líderes no setor.
Não foi sempre assim no gigante europeu, o que provoca um misto de alento e esperança a quem se acostumou a desacreditar do Brasil. Na rodovia que leva de Colônia a Mönchengladbach, chama atenção a sucessão de cataventos gigantes em contraste com a fumaceira expelida por um complexo industrial não tão distante. Passávamos por Garzweiler, denunciou o GPS. A localidade remete às idas e vindas do que, em diferentes épocas, a Alemanha chamou de progresso. O parque eólico foi instalado em área desativada de uma mina a céu aberto de linhito, tipo de carvão mineral altamente poluente usado em termelétricas.
Parecia ser a substituição óbvia — e desejável — de uma fonte de energia suja por outra renovável. Mas a saga data do século XIX, ensinou Thomas Milz, jornalista alemão radicado no Brasil. Quinze aldeias já foram removidas para dar lugar à mineração; hoje, cinco seguem sob ameaça. Nos anos 1980, a cidade de Garzweiler foi transferida de território, nos moldes do que, para ficar num exemplo, a ditadura militar brasileira fez com os municípios baianos de Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado para instalar a barragem de Sobradinho e formar o lago artificial para aproveitamento hidrelétrico do Rio São Francisco. Rendeu até música de Sá e Guarabyra com refrão inesquecível: “O sertão vai virar mar/ Dá no coração/ O medo que algum dia/ O mar também vire sertão”.
Na Alemanha, há tensão permanente entre governos interessados na autossuficiência energética; setor privado em investimento e rentabilidade; ambientalistas em sustentabilidade; moradores na defesa de identidade e tradição. Desde o acidente com a usina nuclear de Fukushima, no Japão, em 2011, o país vem estimulando as fontes renováveis. O problema é abrir mão da matriz danosa, porém segura. Em Garzweiler, as reservas de linhito se esgotaram no lado leste. O terreno saturado abriga a usina eólica com 21 turbinas capazes de abastecer 58 mil famílias. A empresa responsável entrou com 51% dos 110 milhões de euros investidos; o município, com 49%. Há projetos de parques, lago, ciclovia e áreas esportivas para a população, além de espaços para atrair empresas inovadoras, à moda Vale do Silício, na Califórnia.
No sentido oeste, a mineração avança. Nenhum líder quer o ônus de suspender a extração do mineral, tido como recurso energético estratégico no caso, por exemplo, de tensões diplomáticas ameaçarem as importações do gás natural da Rússia. À espreita também estão 20 mil empregos. O complexo do linhito custa à Alemanha 28 bilhões de euros por ano, entre subsídios e custo ambiental. De quebra, há risco de o país não cumprir a meta ambiciosa de redução nas emissões de CO2. Uma comissão do governo está encarregada de um plano para abandonar de vez a fonte suja. As previsões otimistas são de que até 2030 o país continuará dependente do braunkohle, que em alemão significa carvão marrom. A planta 2 de Garzweiler está prevista para operar até 2045.
A queda de braço é prova de que nem só mocinhos estrelam as histórias de nações admiradas. E sempre há tempo de melhorar o que parecia perdido. Questão de energia.
O Globo