domingo, 28 de setembro de 2014

"Dilma e o Mundo", por Helena Celestino

O Globo


Os ventos mudaram, a presidente Dilma não. Ela é uma mulher de opiniões fortes, pouco paciente com os caminhos lentos da diplomacia. Foi assim no primeiro mandato, vai ser assim no segundo se for reeleita. Nem na campanha, a presidente incorporou as sutilezas da linguagem diplomática sugeridas pelo Itamaraty para seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, uma espécie de sessão de gala do Parlamento do mundo. Ela, exatamente igual a todos os líderes internacionais, usou o cenário imponente como palanque para mandar recados ao público interno e sair bem na foto ao lado dos poderosos. 

Só que na hora de analisar as crises do mundo, chutou o balde: intervenções militares acentuam a barbárie, disse. 

No geral é verdade, mas Dilma botou tudo junto e misturado, do califado dos bárbaros do Estado Islâmico à crise na Ucrânia, da derrubada de Kadafi na Líbia à guerra de Israel contra Gaza. Perdeu a pontaria e a voz saiu desafinada, deixou o Brasil na companhia só de Venezuela e Cuba, o discurso teve repercussão internacional zero. Até o Irã, tradicional vilão na narrativa ocidental, foi mais sutil nas críticas, pediu uma moldura legal para os bombardeios.

“Onde está o interesse do Brasil? Falta estratégia, parece política externa adolescente”, critica um diplomata.

Os ataques liderados pelos EUA na Síria estão longe de ter apoio unânime. No Iraque, é mais fácil justificar, o país pediu a ajuda internacional para conter a expansão dos jihadistas. Na Síria, a intervenção não tem a necessária autorização do Conselho de Segurança, ajuda a eternizar no poder o ditador Bashar al-Assad após patrocinar uma guerra com 200 mil mortos e a chance de a coligação internacional acabar com o Estado Islâmico é quase nula. 

Faltam botas no chão, dizem os especialistas, papel reservado aos ainda reticentes países árabes vizinhos ou aos rebeldes da área, uma misturada de grupos nada organizados ou treinados. As alianças são frágeis, a piada nos corredores da ONU é que os bombardeiros da Arábia Saudita não dispararam bombas com medo de destruir instalações pagas por eles mesmos.

Por que o apoio internacional? “É a política interna, estúpido...” A adaptação da célebre frase do assessor de Clinton serve para explicar o apoio do Parlamento à participação britânica nos ataques contra jihadistas no Iraque, um ano após ter rejeitado o pedido de David Cameron de atacar a Síria. “Os votos na Câmara dos Comuns têm muito pouco a ver com a política externa”, diz James Strong, da London School of Economics. Os bombardeios dos Rafales da França, restritos ao Iraque, já tiraram do coma político François Hollande — até então com 13% de aprovação — repetindo o fenômeno ocorrido na época da intervenção francesa no Mali, o outro único bom momento do presidente socialista. 

Nos EUA não é muito diferente: Obama passou três anos resistindo a entrar no conflito na Síria e vendo a aprovação do governo em queda livre, mas às vésperas da eleição legislativa de novembro autorizou os ataques, após alertas de que os candidatos democratas andavam mal. E tem mais, se um milagre acontece e militarmente dá tudo certo, ainda é necessária uma solução política para estabilizar a região, e negociações do gênero não estão no radar.

Então por que Dilma não tem razão? Chefes de Estado não fazem improvisos em discursos para o mundo — seja no microfone da tribuna ou em entrevistas. A presidente brasileira defendeu negociação com os bárbaros do Estado Islâmico, lamentou a intervenção liderada pelos EUA, tudo isso meia hora antes de mais um vídeo de cabeças cortadas ser divulgado. O ministro das Relações Exteriores traduziu as palavras da presidente: ela se referia a uma negociação com a comunidade internacional mas, não por acaso, esta era a tarefa em curso nos corredores do prédio às margens do Hudson.

Na entrevista à revista “Política Externa”, dada em 19 de setembro, Dilma defende uma reaproximação com os EUA e a participação brasileira no Conselho de Segurança, mas em poucas frases na ONU torpedeia a estratégia diplomática desenhada por ela uma semana antes. “Como dar um norte à política brasileira se a presidente rouba a bússola?”, desespera-se um itamarateca.

Dilma não tem críticas à participação do Brasil no mundo durante o seu mandato. “Vai ser mais do mesmo. Para os que defendem uma presidente mais engajada na política externa, vai ser um desapontamento”, diz Anthony Pereira, do Instituto Brasil no King’s College, ao ler a entrevista. Dilma, no texto, responde às acusações de ideologização das relações internacionais. 

Com razão, defende a tese de que a política externa de um país vive a tensão entre os objetivos permanentes de uma política de Estado com as ênfases e as prioridades do governo no poder. O erro é atrapalhar o trabalho de construção da credibilidade do Brasil na cena internacional com palavras fora de ordem, discursos atravessados, posições improvisadas.