Era preciso esvaziar a Praça da Paz Celestiale liquidar aquela gente, mesmo porque o movimento se espalhava
Há 25 anos, o massacre da Praça da Paz Celestial, em Pequim, assombrou o mundo.
Para compreender os acontecimentos, é preciso remontar no tempo.
Em 1978, os comunistas decidiram uma reviravolta: as Quatro Modernizações — da agricultura, da indústria, da ciência e da tecnologia e das Forças Armadas. Deixando de lado o maoísmo, o novo chefe, Deng Xiao Ping, citando Marx, associava o socialismo à abundância. Era preciso descoletivizar a agricultura, imposta pela força, e enriquecer o país, inclusive com os capitais estrangeiros. O segredo era manter a ditadura política. Este seria o elo essencial entre o passado e o futuro. Assim, embora descartadas suas ideias, foi preservada a imagem de Mao Tsé-Tung.
Os resultados econômicos impressionaram. Prosperidade e desigualdades, mas todos pareciam ganhar.
Contudo, como recordava Tocqueville, nem sempre as revoluções acontecem quando as coisas pioram.
Encorajados pelas mudanças, os estudantes reclamaram uma “quinta modernização”, a democracia. O secretário-geral do PCC, Hu Yaobang, favorável ao diálogo, foi demitido, em janeiro de 1987. Seguiram-se a repressão e o silêncio. Mas a memória de Hu permaneceu entre os jovens.
Cerca de um ano e meio depois, em 15 de abril de 1989, anunciou-se a morte de Hu. Sem ordem de ninguém, emocionados, centenas de jovens, vindos a pé, de bicicleta, de ônibus, convergiram para a Praça da Paz Celestial, depositando flores, em homenagem ao falecido. As pessoas voltaram às ruas nos dias seguintes. Tomando gosto, resolveram ficar, ocupando a praça, alojadas em barracas, em ônibus ou no chão. Aquilo transformou-se num imenso fórum de debates.
Em 24 de abril, a grande Universidade de Beida declarou-se em greve: todos à praça. Três dias depois, uma primeira passeata gigantesca, de 500 mil pessoas, com a presença de todas as classes sociais, estremeceu a cidade.
Mas o que desejavam aquelas gentes?
Queriam liberdade e democracia. A abolição dos privilégios das elites. Alguns pediam a queda dos “mandarins vermelhos”. Mas havia ali algo de mais profundo do que um programa político. Na praça ocupada, inventava-se um modo de viver.
A livre palavra, ecoada por alto-falantes portáteis, a informalidade das vestimentas: jeans, camisetas, óculos escuros, bonés, tênis, canecas penduradas no pescoço, para beber água ou sopa. Várias Chinas cruzavam-se: dos monges budistas aos amantes da música ocidental. A partir do crepúsculo, festas, ao som do rock. Um observador anotou um lema ironicamente sinistro, premonitório: “Neste país, só há uma alternativa para a festa: a morte.” Quando vinha o cansaço dormia-se no chão, em colchonetes, em qualquer lugar, sob a temperatura amena da primavera.
Sucediam-se manifestações cada vez mais densas, alcançando o milhão de pessoas. Deu-se início a uma greve de fome. Logo, três mil estavam envolvidos nela, acorrendo médicos e enfermeiras para evitar o pior, em minienfermarias construídas ao acaso.
As autoridades pareciam divididas entre o diálogo e a repressão. Esperavam pelo 15 de maio, quando se efetuaria uma grande visita diplomática, de Mikhail Gorbatchev, secretário-geral do PC soviético. Vinha com promessas de conciliação, procurando reatar uma amizade perdida. No auge do prestígio, o líder russo chegou com um enxame de fotógrafos e jornalistas internacionais. Para os agentes do poder, aquela visita foi um inferno. Por onde o homem ia, estavam lá os estudantes, gritando democracia e direitos humanos. Depois que partiu, ficaram os jornalistas, clicando, reportando para o mundo.
A praça tornou-se um assunto mundial.
Na cúpula do poder prevaleceu, afinal, a linha dura. Em 20 de maio, proclamou-se a Lei Marcial. No dia seguinte, milhares de soldados aproximaram-se. Advertidos, os manifestantes foram ao seu encontro. Parando e subindo nos caminhões e nos tanques, trocavam sorrisos, flores e cigarros. Alguns soldados vestiram-se com as roupas da praça.
Aos olhos do poder, o desafio tornara-se insuportável. Era preciso esvaziar a praça e liquidar aquela gente, mesmo porque o movimento espalhava-se por várias cidades do litoral e do interior.
Fizeram vir unidades de elite do norte do país, desvinculadas dos costumes e tradições da capital.
O massacre ocorreu na madrugada do 3 para o 4 de junho. As estimativas de época falam de um mínimo de 1.400 mortes e cerca de dez mil feridos. Mas os manifestantes eram pacíficos, não passivos. Resistiram. Com pedras, coquetéis molotov, armas capturadas. Num embate desigual, perderam, mas lutaram.
Na praça reduzida a cinzas, alguém encontrou um poema anônimo, o último eco do protesto: “Não quero parecer com o meu pai/suplicando ao céu que nada mude/Nem parecer com minha mãe/Chorar todas as lágrimas do meu corpo/ Quero pegar a madeira verde/E moldá-la à imagem da minha esperança.”
Aqueles jovens viveram e morreram na praça. Não envelheceram.
Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da UFF