Blog Rodrigo Constantino - Veja
Os defensores do livre mercado estão basicamente
divididos em dois grupos: os seguidores da Escola de Chicago e os seguidores da
Escola Austríaca. Na verdade, há mais similaridades do que diferenças entre
elas, pois ambas acreditam fielmente no livre mercado e em mentes livres. Mas o
fato é que divergências importantes acabam mantendo as duas escolas muitas vezes
afastadas, ainda que seus seguidores compartilhem de muitos ideais através da
Mont Pelerin Society, criada por importantes ícones de cada escola. O economista
Mark Skousen, admirador das duas vertentes liberais, escreveu um excelente livro
chamado Vienna & Chicago: Friends or Foes?.
Nele, o autor tenta
abordar as principais diferenças entre os dois grupos, sugerindo que a distância
entre elas está se estreitando.
Antes de tudo, é preciso resumir os principais
pontos em comum das duas escolas. Skousen acredita que suas diferenças não são
tão graves, e encara ambas como herdeiras intelectuais da economia laissez-faire
de Adam Smith. Seriam primas filosóficas, em vez de inimigas.
Ambas colocam a
propriedade privada em um patamar crucial para as bases de trocas, justiça e
progresso na sociedade. Ambas defendem o capitalismo liberal e acreditam na
doutrina da “mão invisível” de Adam Smith, de que as ações individuais motivadas
pelos próprios interesses maximizam o bem-estar da sociedade. Ambas são
extremamente críticas ao marxismo e suas crenças sobre exploração, alienação e
demais noções anticapitalistas.
Ambas defendem o livre comércio, a imigração
liberal e a globalização. Ambas condenam o controle de preços e salários,
incluindo a legislação de salário mínimo. Ambas pregam, de forma geral, um
governo bem limitado, cumprindo funções básicas. Ambas são defensoras da
privatização e da desregulamentação. Ambas se opõem ao corporativismo do welfare
state e atacam os privilégios concedidos pelo governo, pedindo igualdade perante
a lei. Ambas rejeitam o planejamento central socialista e o totalitarismo.
Ambas
refutam o keynesianismo intervencionista que defende um governo grande para
estabilizar a economia. Ambas são geralmente contra a taxação progressiva, o
déficit nos gastos públicos e demais políticas do welfare state. Ambas preferem
soluções de mercado para a poluição e demais problemas ambientais. Em resumo, as
afinidades entre as escolas liberais são enormes.
Mas como elas seriam uma só se tudo fosse igual,
existem importantes distinções. A primeira, e mais relevante, diz respeito à
metodologia. Os “austríacos”, seguindo Mises, adotam uma postura dedutiva,
subjetiva e apriorística para a análise econômica. Além disso, trabalham com um
approach de processo dinâmico de mercado. Os “Chicago boys”, seguindo os
trabalhos de Milton Friedman, preferem uma análise histórica, quantitativa e de
equilíbrio para estudar os acontecimentos econômicos.
Eles partem para estudos
empíricos que poderiam comprovar teorias, enquanto os “austríacos” acham que
dados passados podem apenas ilustrar uma teoria, que deve ter sustentação
exclusivamente lógica. Para os “austríacos”, o estudo econômico deve ser
construído em cima de axiomas auto-evidentes.
Outra diferença importante está na questão
monetária. Os adeptos da Escola Austríaca costumam preferir o padrão ouro, ou
alguma outra moeda adotada naturalmente pelo próprio mercado. A Escola de
Chicago, por sua vez, rejeita o padrão ouro, e parte para uma receita
monetarista, onde a oferta de moeda cresceria automaticamente a uma taxa neutra.
Por fim, os “austríacos” costumam negar a validade dos agregados econômicos como
ferramentas pedagógicas úteis. A macroeconomia é vista com bastante desconfiança
por seus seguidores. Estas seriam, de forma resumida, as divergências mais
relevantes entre as duas escolas.
A Escola Austríaca tem argumentado de forma
persistente que um elevado nível de poupança voluntária dos indivíduos é a chave
para o rápido crescimento econômico. Tanto o keynesianismo, que prega o consumo
elevado como locomotiva do crescimento, como os ativistas monetários, que
enfatizam a oferta de moeda como ingrediente chave para o crescimento, são
atacados pelos “austríacos”.
Para ser mais eficiente, toda a poupança deve ser
voluntária, calcada nas livres escolhas individuais para determinar suas
próprias preferências temporais. Na essência, a teoria do ciclo econômico da
Escola Austríaca enfatiza como a inflação monetária feita por bancos centrais
artificialmente distorce a estrutura da economia, causando uma bolha
insustentável que deve necessariamente acabar estourando.
O capital acaba
alocado de forma ineficiente por conta da intervenção do governo, e o “dinheiro
fácil” não apenas eleva os preços, mas também cria vencedores e perdedores. Os
poupadores, aqueles que são responsáveis pela oferta de capital para
investimentos produtivos, são justamente os grandes perdedores. A instabilidade
econômica evidente em crises financeiras seria culpa das políticas monetárias do
governo, segundo os “austríacos”, e não do livre mercado.
Não obstante o sólido arcabouço teórico, a Escola
Austríaca não foi capaz de reverter o crescimento do keynesianismo durante a
depressão de 1929. Segundo Skousen, o método de Chicago, com vasta base de
dados, análises quantitativas e uso de matemática sofisticada para testar
diversas teorias econômicas, foi mais útil para derrubar o dogmatismo dos
discípulos de Keynes. Milton Friedman acabou trabalhando dentro do próprio
sistema keynesiano, usando seus mesmos métodos para refutar sua “nova economia”.
Friedman mostrou, usando ampla base de dados históricos, que as famílias
ajustavam seus gastos somente de acordo com mudanças na renda permanente ou
alterações de longo prazo, prestando pouca atenção aos padrões transitórios.
Isso derrubava o mito do “multiplicador” keynesiano, cujo modelo se baseava num
efeito alavancado no crescimento econômico para um aumento nos gastos do
governo. Em uma época onde as ciências exatas eram transportadas para as
ciências sociais, o método de Chicago surtiu um efeito maior na prática, ainda
que a sofisticada lógica dos “austríacos” tenha derrubado as falácias dos
keynesianos.
Apesar da força prática da metodologia empírica
de Chicago, Skousen reconhece como extremamente válido o alerta de Mises e Hayek
para os perigos do “cientificismo”. Existe um “lado negro” no uso de dados
empíricos, quando os dados são utilizados de forma errada, são interpretados de
maneira inadequada ou simplesmente estão errados. Interpretar a história não é
fácil, pois se trata de um fenômeno complexo, com infinitas variáveis exercendo
influência. Skousen conclui que ambos os métodos devem ser aplicados, tanto o
empírico como a lógica dedutiva. De fato, Rothbard usa inúmeros dados para
embasar seu estudo sobre a Grande Depressão. Por que não manter uma mente aberta
em relação aos dois métodos? Skousen reconhece a importância do ponto de Mises
sobre a dificuldade de prever o futuro, já que os economistas, de fato, carregam
inúmeros erros de previsões passadas nas costas.
A econometria, que olha para
trás, não deve ser vista como fonte altamente confiável para antecipar o que
ainda está por vir. A história pode até rimar, mas não se repete. Apesar disso,
Skousen considera que Chicago está em vantagem em relação à metodologia. Em
contrapartida, Skousen prefere a teoria de ciclo econômico da Escola Austríaca,
assim como seu foco no processo dinâmico do mercado, em vez de modelos de
equilíbrio.
De forma simplista, a Escola Austríaca é mais
“pura” por defender seus ideais sem concessões ao pragmatismo, enquanto a Escola
de Chicago suja as mãos no mundo real das políticas públicas, influenciando mais
as decisões imediatas. Particularmente, acredito que há uma crucial função para
ambas as posturas. Entendo que é fundamental alguém pregar o ideal, o ponto de
chegada que devemos almejar. Mas entendo que também há um papel extremamente
importante para quem joga com metas mais práticas e de curto prazo. A Escola
Austríaca, nesse contexto, mostra onde deveríamos mirar, enquanto a Escola de
Chicago apresenta opções concretas para o trajeto. Para sair de A até C, talvez
seja preciso passar por B. A Escola de Chicago foca bastante nas “second-best
solutions”, nas alternativas viáveis. Se eu tivesse que resumir em uma
expressão, a Escola de Chicago pensa que o ótimo é inimigo do bom, e luta pelo
bom possível.
Mas assumindo o papel de advogado dos
“austríacos”, até por ter um viés mais nessa direção, eu lembraria que o inverso
também pode ser verdade, ou seja, o bom muitas vezes é inimigo do ótimo. O que
quero dizer com isso é que em muitos casos podemos deixar para trás o ótimo,
justamente porque objetivamos e ficamos satisfeitos apenas com o bom. Quem
coloca como meta a medalha de bronze, que com certeza é melhor que nada, pode
estar abandonando as chances de conseguir a medalha de ouro.
O livro de Skousen é dedicado aos membros da Mont
Pelerin Society, exatamente porque são amigos tanto da Escola de Chicago como da
Escola Austríaca. Afinal, ambas defendem a liberdade individual, o capitalismo
de livre mercado, e lutam contra inimigos comuns, intervencionistas e defensores
do planejamento central, que desconfiam da ordem espontânea e, por conseguinte,
condenam o livre mercado. Os inimigos, infelizmente, ainda têm conquistado muito
espaço no campo das idéias, mesmo depois de evidentes fracassos de suas crenças.
Por esta razão, e também por entender que as semelhanças são mais importantes
que as divergências, eu procuro olhar as duas escolas como complementares, e não
como inimigas.
Milton Friedman, George Stigler, Gary Becker,
Mises, Hayek, Rothbard e Kirzner, entre outros, podem ter opiniões conflitantes
sobre determinados temas. Mas de forma geral, estão bem mais próximos uns dos
outros do que qualquer um deles em relação aos defensores do intervencionismo
estatal, seja o keynesiano, seja o marxista. Viena e Chicago, ambos representam
ícones da luta pela liberdade. O mundo será definitivamente um lugar bem mais
livre quando o debate de idéias for dominado por estas duas escolas. Aí sim, o
foco poderá ser bem maior nos aspectos que afastam Viena de Chicago. Até este
dia – que ainda não parece estar próximo – o ideal é focar nos fatores de
convergência entre elas, para garantir munição pesada contra os inimigos da
liberdade.