O Estado de São Paulo
No último mês de janeiro tive a oportunidade de assistir a um espetáculo
democrático em Paris. Num sábado, indo para um ponto de ônibus, vi um comunicado
da companhia avisando que no dia seguinte, a partir das 14 horas, haveria um
desvio das linhas que passavam por ali em razão de manifestações ("manif", como
eles dizem), mas a passeata seguiria por avenidas servidas pelo metrô.
No dia
seguinte, sem me dar conta, fui almoçar num restaurante no trajeto e vi a
manifestação. Era uma passeata de - segundo os organizadores - 200 mil pessoas,
feita com aviso prévio à autoridade, num domingo, para prejudicar menos as
pessoas, e sobre linhas do metrô, para não impedir a livre locomoção dos não
manifestantes. E o principal: tinha povo, uma massa humana capaz de levar
governantes e legisladores a pensar duas vezes no assunto.
Na década de 1980 o governo Margaret Thatcher enviou ao Parlamento inglês um
projeto de lei que ficou conhecido como dos "cidadãos de segunda classe". Pelo
projeto, somente teria direito de fixar residência na ilha quem lá tivesse
nascido, não os que haviam nascido nas colônias. Pois bem, os "cidadãos de
segunda classe" convocaram manifestação para um domingo, dentro do Hyde Park, e
levaram para lá 1 milhão de pessoas.
Com esse número expressivo de gente, na
segunda-feira o governo retirou o projeto e nunca mais falou nisso. Mais um
exemplo de manifestação que mostra força popular e não atrapalha a vida das
pessoas em geral.
Um dos piores restolhos do entulho autoritário é essa ideia generalizada de
que democracia é um regime no qual não é necessário cumprir a lei, porque cada
um é "livre" para fazer o que bem entender, pouco se importando se isso vai ou
não violar direitos dos outros.
Logo após o 25 de Abril, que livrou os portugueses de uma ditadura muito mais
longa que a nossa, contava-se uma piada de português (eles também contam de
brasileiro, de modo que esse jogo empata). Um sujeito desembarcou no aeroporto
de Lisboa e tomou um táxi para o hotel.
Na chegada o motorista cobrou o triplo
do que o taxímetro marcava e se iniciou uma discussão. Um policial veio ver do
que se tratava e o taxista explicou: "Este é um país livre e eu cobro quanto eu
quero". O guarda virou-se para o passageiro e disse: "O gajo tem razão, este é
um país livre".
O passageiro retrucou: "Ah, é um país livre? Então eu só pago se
quiser". E foi a vez de o agente dizer ao taxista: "O gajo aí também tem razão".
Se isso fosse verdade, chegaríamos à conclusão de que a democracia é um regime
em que é impossível viver.
Mas não é nada disso. Um Estado Democrático de Direito baseia-se,
fundamentalmente, no respeito aos direitos de todos, estabelecendo um governo da
maioria que é obrigado a proteger a minoria. É um regime em que a lei garante a
todos os seus direitos, que devem ser sempre observados.
Claro que é sempre garantido o direito de protesto e manifestação, dentro de
certos limites impostos pelos direitos alheios.
Vamos começar com o mais simples, que é a questão dos mascarados. Já ouvi
pessoas dizendo que a polícia não pode deter um mascarado, nem impedi-lo de usar
máscara, pois a lei não prevê que esse fato seja crime. Calma lá! A polícia não
existe somente para reprimir crimes, mas também para preveni-los. O que diz a
Constituição? "É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato"
(artigo 5.º, inciso IV). Ora, como pode alguém arrogar-se o direito de violar a
Constituição? E por que alguém vai a manifestação usando máscara? Certamente
para cometer crimes impunemente.
O assunto torna-se mais grave quando um grupinho de umas 200 pessoas (não 200
mil, como vi em Paris) resolve fechar uma artéria da cidade, frustrando o
direito de ir e vir de milhões. Voltemos ao "livrinho": "Todos podem reunir-se
pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de
autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o
mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente" (artigo
5.º, inciso XVI). Ora, deixa-se de cumprir algo que a Constituição exige e as
autoridades cruzam os braços, não estão nem aí!
Há mais na nossa Constituição, que é a bíblia do Estado Democrático de
Direito. A propriedade e a segurança estão - ao lado da vida, da liberdade e da
igualdade - entre os direitos fundamentais básicos (artigo 5.º, caput). Além
disso, diz o artigo 144 que "a segurança pública, dever do Estado, direito e
responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio...". E as autoridades assistem
bovinamente à depredação de patrimônio público e privado sem exercer o poder que
o direito lhes atribui para a garantia da vida social harmoniosa.
A greve é também um direito constitucionalmente assegurado, que não inclui a
depredação do patrimônio alheio ou o fechamento de vias públicas.
Como escreveu o grande e saudoso professor Miguel Reale, em estudo seminal
sobre filosofia do Direito Penal, de 1968, "a experiência jurídica (...) sendo
sempre uma exigência de liberdade e uma constante escolha entre múltiplas
alternativas, é em si mesma problemática, sendo tal problematicismo acentuado
pela presença de um outro fator, não menos necessário, que é a exigência de
autoridade capaz de assegurar e preservar a coexistência efetiva das liberdades
e o bem-estar social" (Preliminares ao Estudo da Estrutura do Delito, destaques
do autor).
Não é preciso ir à literatura jurídica para perceber isso. José Saramago o
demonstra no Ensaio sobre a Cegueira, no momento em que a falta de autoridade
traz o império da lei do mais forte.
Se o poder público continuar achando que dar flechada em policial faz parte
da liberdade de manifestação do pensamento, este país logo se transformará em
anarquia e partiremos para a desintegração social.
* Advogado criminalista